paul mescal canta mitski, sally rooney escreve riverdale
uma crítica a intermezzo para falar do papel da crítica hoje
Em setembro de 2023, o alvoroço cibernético anual para saber qual seria o lineup do Lollapalooza teve início. Entre piadas sobre os cancelamentos típicos do festival e sobre os nomes de banda indie que utilizam palavras biblicamente desconexas (exemplo meramente ilustrativo: Rato De Laboratório Usa Calcinha), surge uma peculiar imagem contendo os possíveis artistas contratados. My Chemical Romance, Pearl Jam, Lana Del Rey, NewJeans, Blink-182. Certo, pessoas reais e que existem, que fazem música. Mais para baixo, Ana Maria Braga convida Mayra Cardi, Róisín Murphy Recita A Pedra Filosofal, Paul Mescal Canta Mitski. É difícil descrever a importância dessa obra de arte contemporânea no léxico do meio digital, é difícil descrever a ludicidade de todas as referências. Mayra Cardi (notória chifruda) como convidada no Mais Você (que havia sido palco da revelação dos cornos da cantora Luísa Sonza), Róisín Murphy recitando um livro de outra mulher transfóbica, e, mais importante para mim, Paul Mescal (ator conhecido pela série Pessoas Normais e por correr por aí trajando mini-micro-shorts) cantando Mitski (cuja discografia ele vive postando no Instagram de modo simultaneamente sincero e putífero). Que lindo isso, a internet! Porém, não trago essa longa contextualização para mostrar o poder e a genialidade de mentes cronicamente onlines. Trago essa longa contextualização porque essa imagem é produto do conhecimento íntimo de um universo específico e da posterior capacidade de paródia desse mesmo universo. Enfim, cansado de me ouvir explicar uma imagem, o leitor pergunta: “tá, mas e daí?”. De modo que posso finalmente responder: e daí que a Sally Rooney (autora conhecida por Pessoas Normais e alguns outros livros) escreveu Riverdale (série da CW sobre adolescentes, assassinatos, ursos, entre outros) em formato de ficção literária e ninguém falou nada. Novamente, terei que ser pioneira.
Para isso, passaremos por alguns lugares comuns específicos do universo sally-rooneyano, como, por exemplo, mulheres de vinte anos com o nome no Serasa, homens católicos ricos, praias, discussões sobre marxismo, discussões sobre a bíblia e pensamentos intrusivos sobre os limites entre BDSM e normalidade. Após o leitor estar suficientemente familiarizado com os contornos dessa Irlanda marcada por cigarros e coxudos chorosos, chegaremos à Riverdale, série que ousa propor que todos seus personagens são LGBT+ como forma de resolver furos no enredo, algo que não chega nem a passar pela cabeça de roteiristas e produtores mais desprovidos de criatividade. Por fim (e, claramente, com muito custo), chegaremos ao papel da crítica na atualidade, que é justamente achar o que não estava lá antes ou, de modo mais didático, botar o Paul Mescal no palco para cantar Mitski.
SALLY ROONEY & JUGHEAD JONES: VOZES CONTEMPORÂNEAS
[para uma leitura mais imersiva e eficiente do texto, recomendo o clique em todos os links destacados. nas notas de rodapé se encontram os links mais triviais.]

Em 2019, li um excerto do livro The Triggering Town1 do poeta americano Richard Hugo. O tópico discutido era a repetição de palavras em poemas, como certas imagens se tornam obsessões de autores. A chave de virada, segundo ele, seria abrir mão dessa honestidade imediatista (o sentimento imediatamente te leva à palavra-obsessão, a palavra-obsessão te leva à imagem de sempre) e construir uma imagem artificial que de alguma maneira consiga articular a mesma emoção que o poema nu (ou seja, aquele que revela todas as suas obsessões linguísticas). Para Hugo, poetas passam a vida inteira tentando esconder que todos os seus poemas são o mesmo. Quando li Belo Mundo, Onde Você Está (2021), finalmente percebi que romancistas sofrem do mesmo mal, porém alguns conseguem disfarçar melhor. Sally Rooney faz parte do grupo que não consegue mascarar os seus vícios. O que torna seus livros tão facilmente identificáveis são seus topoi, não uma voz literária única. Costumo dizer que ler o conto Mr. Salary2 é o suficiente para entender todo o universo da autora. Todos os enredos, conflitos e relacionamentos que mais tarde aparecerão nos romances estão naquela despretensiosa publicação do Irish Times de 2017.
Mas quais são os topoi de um romance da Sally Rooney?
O alicerce é a luta de classes. Obrigatoriamente um dos protagonistas será pobre e o outro rico. Todos os conflitos terão como base o atrito financeiro, mesmo que outras questões possam ser adicionadas posteriormente para um tempero extra. Em Conversas entre Amigos (2017), Bobbi é rica e Frances não (mas namora um velho bem estabelecido, o Nick). Em Pessoas Normais (2018), Marianne é rica e Connell não (eles namoram). Em Belo Mundo, Onde Você Está (2021), Eileen é rica (mas namora um pobre coitado, o Felix) e Alice não (mas namora um velho bem estabelecido, o Simon). Em Intermezzo (2024), Peter é rico (mas namora uma pobre coitada, a Naomi), Ivan não (mas namora uma velha bem estabelecida, a Margaret). Invariavelmente, a pessoa pobre sentirá uma mistura de inveja e ressentimento da pessoa rica.
Todos os homens ricos mencionados são católicos e andam por Dublin arrastando o peso de suas culpas religiosas por: 1) estarem envolvidos com mulheres mais novas; 2) gostarem de atividades mais apimentadas entre quatro paredes; e 3) por acreditarem que seus relacionamentos são uma espécie de transação capitalista, o que banalizaria o amor que Jesus pregava. Todas as mulheres pobres mencionadas acima andam por Dublin arrastando o peso de suas personalidades espinhosas, o que resulta: 1) numa capacidade de fumar cigarros ou maconha de modo sensualmente blasé; 2) numa altíssima inteligência que se manifesta em comentários irônicos; e 3) num gosto mais apimentado entre quatro paredes. Destaco aqui que Marianne se encaixa nessa última categoria, porque, mesmo que não seja pobre, é pobre coitada.
Em algum momento, os personagens de Rooney farão uma viagem até a praia. Sem dúvida alguma um dos casais discutirá na cozinha. Na sarjeta metafórica, os protagonistas se questionarão a respeito do significado da normalidade no século XXI. Em outro momento, aparecerá uma piadinha envolvendo a dinâmica Daddy/Babygirl, que será prontamente rechaçada para que todas as consciências continuem limpas (fetiche aqui não! isso aqui não é livro da Amazon, se liga!). Alguém irá passar por um surto psicológico, que será prontamente curado por amor, não por medicamentos controlados. O capitalismo será discutido exaustivamente em bares, carros e/ou e-mails. A ideia de Jesus como pai do comunismo será plantada nas entrelinhas do texto. De modo geral, todos estarão em situações desesperadoras (algumas mais que outras) no início da narrativa, o que resultará em decisões duvidosas e relacionamentos transcendentais nos quais idade é apenas um número (com a exceção de Alice e Felix, casal tão ruim e enfurecedor que a mera lembrança de que existem me causa náuseas).
O conflito é desencadeado pela internalização de que um desses relacionamentos com diferença de idade é impossível: a dinâmica de poder é muito desbalanceada, um dos personagens é casado etc. O conflito é resolvido quando a pessoa que termina o relacionamento percebe que o mundo está acabando, então não vale a pena ficar sendo preciosista com essas questões. Quem é rico pode gastar quanto dinheiro quiser sustentando uma bela mulher, quem casa pode trair. Não há nenhum obstáculo que não possa ser facilmente superado com um pouquinho de falta de escrúpulos. Viva o amor!
Se parece que Sally Rooney está na quarta edição do mesmo romance, é porque ela de fato está. Aprisionada por uma narrativa cheia de repetições e pelos cenários de Dublin, nossa irlandesa franjuda abre o notebook e começa a digitar a história que leitores mais ávidos conseguiriam recitar sem nem precisar de consulta. Isso te lembra alguém? Uma figura esquerdista com uma leve franja aprisionada por uma narrativa e uma cidade… Pensou Jughead Jones? Se pensou, pensou certo. Ele mesmo, conhecido por essa fala tão fundamental para a cultura pop como a conhecemos.
Jughead Jones é um dos personagens principais da série televisiva Riverdale (CW), encabeçada majoritariamente pelo produtor/diretor/roteirista Roberto Aguirre-Sacasa. A história se passa em Riverdale, cidade fictícia nos Estados Unidos, e reconstrói os eventos após o misterioso falecimento de Jason Blossom, quarterback do time de futebol da escola. Acompanhamos o grupo de amigos Archie Andrews (ruivo), Jughead Jones (esquisito), Veronica Lodge (rica) e Betty Cooper (loira) enquanto eles tentam desvendar o que exatamente aconteceu na noite da morte de Jason. A primeira temporada é um mistério adolescente normal, com procedimentos investigativos e dramas amorosos de ensino médio. Depois, as coisas ficam bem curiosas: bruxas, ursos, assassinos em série, portais para outras dimensões, seitas que furtam órgãos, foguetes etc. Mas o mais relevante para esse texto é que Jughead é quem narra tudo isso, ele escreve Riverdale teoricamente ao mesmo tempo em que Riverdale vai acontecendo. Nas temporadas finais, encontramos o nosso menino abatido, pálido, tendo que lidar com as consequências de não conseguir contar outra história além daquela. Se a vida dele é a história que ele conta, como parar? A solução que Aguirre-Sacasa encontra é justamente não acabar a história, mantendo-a numa espécie de loop temporal. O final de Riverdale é o começo de Riverdale que é o final de Riverdale, por aí vai.
Não só todo livro da Sally Rooney é assim como progressivamente suas temáticas vão se tornando mais adolescentes, ao ponto que ler Intermezzo foi como experienciar um spin-off. Temos o fascismo e o capitalismo, casais compostos por mais de duas pessoas, a bíblia, as crises de meia idade aos trinta anos, o abuso de substâncias, o slut-shaming e as discussões sobre sindicalização. Se algum dia você desejou que Riverdale fosse uma narrativa irlandesa dramática e intelectualizada, tenho ótimas notícias.
A MÃO INVISÍVEL DO MERCADO OU A MÃO INVISÍVEL DE HIRAM LODGE: INTERMEZZO & RIVERDALE
O enredo de Intermezzo é o seguinte: após o falecimento do pai, os irmãos Ivan (mais novo) e Peter (mais velho) se veem sem chão por razões diferentes. Ivan porque era próximo do pai, uma das únicas pessoas do mundo que parecia de fato entendê-lo. Peter porque não era próximo do pai e se culpa por causar climões na família. O título vem de uma manobra do xadrez, que é praticado profissionalmente por Ivan, mas o protagonista real da história é Peter. A narração é a mais experimental de Rooney até agora, sendo um fluxo de consciência que sintaticamente imita a prosódia do sotaque irlandês. Enquanto o irmão mais novo pensa mais compassadamente com longas sequências lógicas, o mais velho pensa rápida e ansiosamente, trocando a lógica por um desespero constante. Outra narradora é Margaret, diretora de um centro de artes e posterior namorada de Ivan, e seu fluxo de consciência não tem nenhuma marca distintiva (e também não tem justificativa para existir). Naomi e Sylvia, ambas interesses românticos de Peter, não ganham voz no texto para além de como são percebidas.
Eu tive inúmeros problemas com Intermezzo, mas quero começar pelo mais gritante, que é a Sylvia, ex-namorada atual do protagonista. Após sofrer um acidente de carro, ela termina o namoro com Peter (que teria resultado em casamento, o romance frisa repetidamente) e decide focar na sua carreira acadêmica, tornando-se professora numa universidade. A razão do término é que a sequela do acidente é uma dor crônica que a impede de qualquer tipo de sexo penetrativo. Agora eu quero que façamos um exercício lógico e nos perguntemos como exatamente um impacto físico causaria isso, qual a ciência por trás disso. A condição de Sylvia não é explicada além disso e ela sempre trata essa dor como um indicativo de sua morte para o mundo do romance. Durante a narrativa, somos bombardeados com o fato de que é impossível que Peter se case com Sylvia porque ela não pode lhe dar uma família nuclear e nem qualquer tipo de intimidade sexual. Novamente, quero que façamos um exercício lógico e nos perguntemos o que diabos Rooney quis dizer com isso.
Fiquei muito satisfeita quando pesquisei “Sylvia Intermezzo” no Google e descobri que a questão também incomodou duas jornalistas do The Cut3, que foram atrás de um ginecologista para esclarecer essa condição misteriosa. O homem ficou confuso, dizendo que “tudo é possível”, mas deixando implícito que nem tudo é plausível. Tipo quando o Archie é atacado por um urso em Riverdale.
Outra coisa que é duvidosa nisso é o fim da vida sexual e, consequentemente, do romance. Trago aqui como exemplo paradigmático e atual Luigi Mangione, o homem responsável por matar o CEO da UnitedHealthcare. Segundo uma fonte próxima de Mangione, ele não teria como praticar certas atividades dada a quantidade de pinos que tem nas costas. As cunhadas (gênero neutro) de Luigi prontamente se pronunciaram sobre o assunto, citando pelo menos quatrocentas soluções, que incluíam posições, ritmos e maneiras de almofadar a região. Uma coisa é certa: se ele sair da cadeia, nunca mais vai precisar se preocupar com a questão da intimidade bíblica. Por que a personagem de Sally Rooney (fictícia com uma condição inventada) não recebe o mesmo tratamento? A resposta é bem simples e veio até mim após uma leitura sonolenta de Breve Romance de Sonho (1926) de Arthur Schnitzler.
À certa altura do romance, Peter percebe que ama tanto Naomi (sua namorada de 23 anos) quanto Sylvia (sua ex-namorada de 33 anos). A solução óbvia e que as duas mulheres encorajam é a formação de um trisal. Peter surta, passa a contemplar pular de toda ponte em Dublin, desaparece para a casa da mãe, bate no irmão. Um trisal? Um trisal, aquilo que botou o mormonismo na ilegalidade? Não! Inaceitável. Errado! Sally Rooney escreve parágrafos e mais parágrafos sobre como um trisal é algo apavorante. A única coisa que acalma Peter e que, ao final, possibilita que ele aceite formar o trisal, é a ideia de que ele não é biblicamente íntimo com Sylvia. Ele precisa de Naomi pela parte sexual, ele precisa de Sylvia pela parte intelectual. Se qualquer uma das duas fosse capaz de pensar e manter uma vida sexual saudável, ele explodiria (e a Sally Rooney também). A doença de Sylvia existe para normatizar a narrativa, ela torna mais aceitável o comportamento de Peter ao afirmar que a formação do trisal é uma necessidade evolutiva (segundo a narrativa, é importante ter filhos) e apenas coincidentemente afetiva. Isso além de mostrar que namorar duas mulheres não tem nada a ver com os gostos depravados do nosso protagonista.
Riverdale não tem essa culpa católica e cria um quadrisal.
Um outro problema que tive foi o Ivan. No início do livro, aparece vocalizada a possibilidade de Ivan ser autista, algo que é razoavelmente corroborado ao longo da narrativa. Interessante, estava me identificando muito como membro de carteirinha desse sindicato específico. Então, Rooney nos revela que Ivan na verdade é extremamente machista e que, até conhecer Margaret, era incel. Legal, dentro do tom. Uma das opiniões de Ivan é, inclusive, que não devemos acreditar em mulheres até que o estupro seja provado verídico — isso é citado uma vez no romance para nunca mais, de modo que não sabemos se o personagem muda de opinião ou não ao final. Simultaneamente, ele se vê como muito bonzinho por finalmente conseguir enxergar mulheres grávidas como pessoas. Margaret, sua namorada treze anos mais velha, não sabe de nada disso. Margaret, sua namorada treze anos mais velha, se pega pensando chorosamente como seria complexo na sua idade “dar filhos” a ele, esse beatífico homem jogador de xadrez. É um paralelo curioso que mostra não só como a dupla só se ama porque não se conhece, mas também reforça que mesmo um relacionamento atípico pode ser tradicionalizado.
Tudo na maneira como Rooney aborda sexualidade nesse livro é duvidoso. Naomi, a mulher gen-z universitária, estereotipicamente vende fotos suas nua e gosta de BDSM. A primeira parte não assombra tanto Peter, mas a segunda? Cena sim, cena não recebíamos um monólogo interno sobre a ética do que estava acontecendo e sobre as razões daquela dinâmica desestabilizá-lo. Toda hora um estudo antropológico sobre a sem-vergonhice da geração Z. Se Sylvia é elegante e requintada em sua castidade, Naomi é caos trajando um vestidinho inapropriado. É muito engraçado, aliás, como a autora quer calçar as botas de antropóloga ao mesmo tempo em que condena qualquer coisa que não seja uma performance tradicional de heterossexualidade. Peter entra em parafuso porque seus gostos são desviantes, são uma doença perversa! Ivan, por sua vez, está em paz porque apenas “faz amor”. Se lembrarmos de como Rooney tratou a aventura de Marianne no mundo do BDSM e a supostamente emocionante constituição da família nuclear de Alice, as coisas ficam mais estranhas ainda. Guarde seus valores tradicionais burgueses antes de começar um romance, Sally Rooney!
É curioso ver também esse livro ser chamado de “o mais maduro da carreira de Rooney” sendo que todos os conflitos são comicamente desenvolvidos. Ivan anda cabisbaixo porque está perdendo muito no xadrez. A solução? Ele começa a ganhar, porque bastava entender os épicos altos e baixos do xadrez competitivo. Naomi é injustamente despejada da casa que vive com os amigos, chegando a ser presa. A solução? Morar com o namorado rico num lindíssimo apartamento. Margaret obsessivamente pensa na reação das pessoas quando descobrirem o seu caso com um homem treze anos mais novo. A solução? Nenhuma. Quando descobrem, ela passa a se ver como uma magnética mulher rebelde, capaz de subversão. Após Peter quase ir com Deus, fugindo da possibilidade do trisal, o seu problema de abuso de substâncias vira apenas uma memória distante, nunca mais discutida na narrativa. Que mágico!
Se em Riverdale, a mão invisível do pai de Veronica (Hiram Lodge) paira sobre a sociedade e reorganiza as relações materiais e afetivas, aqui é a mão invisível do mercado. Rooney parece querer investigar como a lógica capitalista impacta intimamente nossas vidas, mas, mais do que isso, ela deixa claro que quer responder a pergunta “sob quais condições a vida é suportável?”, que aparece salpicada nos fluxos de consciência dos irmãos. Ao final do livro, após todos os personagens conseguirem o que querem sem de fato muita reflexão, fica claro que o que torna a vida suportável é ser mimado pelo universo com a realização de todos os nossos desejos. Por essa ninguém esperava!
Vou falar do que é bom em Intermezzo.
É um livro engraçado, sua ironia se sustenta. A experimentação formal dá certo na maioria das vezes, tornando a leitura dinâmica e bem rápida. Aborda questões políticas irlandesas interessantes, como a crise no mercado imobiliário. É emocionante em breves instantes, quando Rooney larga sexualidade e fala de família, dos dois irmãos divididos e unidos pela enorme dor da perda do pai. Mas, mesmo com esses aspectos, o romance de formação não forma ninguém. Todos saem da história como começaram. O final de Intermezzo é o começo de Intermezzo que é o final de Intermezzo, por aí vai. Os personagens que a autora nos apresenta não aprendem grandes lições ou têm uma pequena epifania, conseguindo tudo o que querem sem cerimônias, sem suar. Não há nada ali que traga uma sensação de finalidade, de catarse. É um loop temporal previsível.
Ao contrário de Riverdale, que é um loop temporal absurdamente imprevisível.
A AUDIÊNCIA, KEVIN, A AUDIÊNCIA!: A CRÍTICA HOJE
Antes de começar esse texto, cacei resenhas e artigos sobre Intermezzo internet afora. Fiquei chocada ao me deparar que o senso comum é que essa é uma obra brilhante, de uma autora brilhante. Todos os colunistas falavam as mesmas coisas, utilizando as mesmas palavras. Qualquer crítica era açucarada com um elogio dez vezes maior. Pareceu-me que mesmo a crítica especializada estava deixando sua especialidade de lado para uma puxação de saco. Se nenhuma pessoa na face da Terra tem coragem de dizer formalmente que um livro da Sally Rooney é ruim, será que algum dia ela será capaz de escrever algo melhor? Se ninguém aponta formalmente que ela repete a mesma história desde 2017, será que algum dia ela será capaz de contar uma nova?
A crítica, que acredito ser acima de tudo um trabalho pautado no amor (amor pela obra criticada, pela própria arte da crítica, pela investigação), é agente de mudança, é didática. Ela pega na mão do leitor, guiando-o pelos sentidos possíveis de uma obra, mostrando-lhe as razões para a existência desses sentidos, até que ele consiga sozinho enxergar também. Se o leitor consegue enxergar sozinho, ele se torna exigente — passa a querer caminhos mais complicados para levá-lo aos sentidos, sentidos que devem ser mais obscuros, menos óbvios. Essa nova capacidade e esse novo desejo promovem a mudança, uma alteração na qualidade e no modo como a arte é consumida. Sem que o crítico se aprofunde, sem que o crítico critique, o usuário sallyrooneystan nunca conseguirá dar uma nota inferior a cinco estrelas para Intermezzo no Goodreads. Mas, mais do que isso, sem que o crítico estimule o pensamento alheio, o usuário sallyrooneystan nunca conseguirá articular o que torna Intermezzo passível de cinco estrelas no Goodreads. O estabelecimento desse movimento pensante permite, por sua vez, um melhoramento de futuras obras originais, sejam da mesma autora ou não.
Por meio desse texto, que confesso ser uma experiência um pouco inusitada, tento provar de modo prático que um arcabouço teórico esdrúxulo também pode servir de base para uma crítica razoavelmente eficiente (você, autor do aclamado gênero ficção literária, gostaria de ser comparado a Riverdale?) (ademais, você, leitor, teria feito essa conexão?). Tento provar também que uma crítica acessível é aceitável, que nem tudo precisa estar no alto das torres de marfim da academia — mas, ao mesmo tempo, algo acessível não precisa diminuir a inteligência da audiência, que é capaz de concluir sozinha se concorda com as similaridades entre Intermezzo e Riverdale e que, nesse processo, irá exercer seu próprio pensamento crítico.
Tendo em mente que nada nesse texto é imparcial e minhas referências são escolhas propositais pautadas tanto pelo que gosto quanto pelo o que estou tentando provar (que a escrita de Sally Rooney se mostra tão imatura quanto uma série adolescente, às vezes chegando a ser pior), o leitor será apresentado a uma maneira nova de ver duas coisas que antes existiam em separação. É por meio da formalização do meu conhecimento íntimo de um universo específico e da minha capacidade de desconstrução desse mesmo universo que, finalmente, o leitor conseguirá compreender como é possível que Paul Mescal cante Mitski — ou melhor, como é possível que Sally Rooney tenha escrito Riverdale. É quando essa imagem se forma nas mais variadas cabecinhas, incentivando pensativos aplausos ou pensativos gritos de completo terror, que considero a minha função parcialmente cumprida.
Cumprida mesmo ela estará apenas quando Sally Rooney, tocada por minhas palavras, escrever uma história diferente. Mas até lá… Bem vindo ao palco, Paul Mescal!