a lenda de shahmaran: cada um tem o boitatá que merece
Em meu texto sobre leitores de erótica no Kindle, critiquei comédias românticas turcas, produções audiovisuais com atuações tão ruins que todos os atores obrigatoriamente devem ser modelos, de modo a atrair a atenção da audiência para uma mandíbula mais bem definida ou para a simetria cirurgicamente conquistada de uma face, desviando o foco da performance. Com medo de ter injustiçado uma nação inteira com aquela minha observação sobre romances turcos, resolvi assistir uma série da Netflix — conteúdo mais longo, mais tempo para desenvolver as relações, etc. Escolhi A Lenda de Shahmaran (2023), que estava na minha lista há muito tempo, mas cuja sinopse evasiva me preocupava. Antes de clicar eu sabia apenas de duas coisas: 1) tinha algo sobrenatural na história; 2) todos os atores seriam bonitos ao ponto de causar desconforto. Apesar de ter acertado nessas suposições, nada teria sido capaz de me preparar para as aventuras inacreditavelmente entediantes em tons beges que viriam a seguir. Nada teria sido capaz de me preparar para homens-cobra. Bom, talvez uma rápida consulta ao Google, mas isso não vem ao caso.
Como na tradição poética da Grécia Antiga, A Lenda de Shahmaran espera que a audiência tenha conhecimento prévio da mitologia. Como meu contato com a cultura turca se resume ao esporádico filme ruim, a experiência foi similar a de assistir Homero declamar a Ilíada sem saber quem é Aquiles. A série acompanha a doutoranda em psicologia Shahsu (Serenay Sarıkaya), que vai de Istambul até Adana para ministrar uma palestra e acaba utilizando essa oportunidade para confrontar o seu avô, responsável por arruinar a infância de sua mãe ao sair um dia para comprar cigarros e nunca mais voltar. A chegada de Shahsu provoca uma agitação generalizada no vilarejo interiorano de seu avô, especialmente nos esquisitos e ligeiramente inscestuosos vizinhos do lado. Essa agitação reverbera na nossa bolsista CAPES e ela começa a lutar com Delírios, Visões, sonambulismo e paranoia. Para combater esses sintomas de loucura, ela paradoxalmente joga fora seus misteriosos comprimidos anti-loucura. Aí a história começa de verdade.
Shahsu, se arrastando pela cidade em perenes estados de surto, passa a perceber que o simbolismo de cobras lhe persegue. Em todo lugar, o barulho de cobras, as próprias cobras aparecendo e desaparecendo, feirantes esquisitas sussurrando sobre lendas cobrísticas. O que está acontecendo? A série não explica direito, mas nos oferece a visão da família dos vizinhos incestuosos a respeito da situação. Maran (Burak Deniz), único filho homem do pessoal que mora ao lado e surpreendentemente sobrancelhudo, se debate contra a ideia de destino. Segundo uma lenda, ele terá que fazer Algo (não sabemos o que), e ele (ateu) quer paz. Chega de lenda, chega de deuses, chega desse papinho torto. Porém, suas irmãs, cujo nome não lembro (preciso melhorar no feminismo), estão animadíssimas com os sinais da concretização do destino e começam a maquinar maneiras de aproximá-lo de Shahsu, peça-chave no que quer que esteja transcorrendo.
Começa então um romance indeciso. Ao mesmo tempo em que Maran se sente atraído por Shahsu, ele quer que ela vá embora para evitar que a lenda se torne realidade. Shahsu, que acaba se tornando assistente da professora que a convida para a palestra, está preocupada com cigarros, seu avô calado, delírios e com o fogo carnal. Assistimos nossa protagonista ficar de saco cheio do homem sobrancelhudo e contemplar o quanto vale a pena beijá-lo mesmo assim. Porém, estamos na Turquia e sobrancelha é o que mais tem. Entra Cihan (Mert Ramazan Demir), assistente/secretário no departamento para qual ela trabalha, um homem meio palhaço e também proprietário de fabulosas sobrancelhas. Finalmente! Shahsu vê uma resposta para a questão do fogo carnal. Mas calma! Ela percebe que na verdade ela meio que gosta da indecisão do Maran e pensa consigo mesma “estou apaixonada” (à essa altura, vimos os dois juntos umas cinco vezes, todas muito mal-sucedidas em estabelecer qualquer conexão). Enquanto o coração pondera e a libido grita, as cobras continuam aparecendo. De noite, rastejam pelo quarto de Shahsu. Um homem encapuzado que a segue por todos os lugares se transforma num cobrão, o vilarejo começa a sussurrar sobre cobras e mulheres, um suícidio coletivo num poço motivado por barulhos cobrísticos instiga os jornais locais, ela acorda numa floresta e é picada, entre outras peripécias. A situação dos répteis em Adana está complicadíssima.
Em algum momento, a série passa a usar a palavra Basilisco e o espectador é forçado a aceitá-la. Não se sabe, inicialmente, o que diabos isso significa naquele contexto, mas eventualmente descobrimos que Basiliscos são pessoas-cobras, descendentes diretos das pessoas-cobras que habitavam a caverna de Shahmaran. E agora irei explicar ao leitor o que é A Lenda de Shahmaran. Antes de toda forma de civilização, um homem, chamado Çamsap, andou pelos matagais e florestas da Anatólia até se deparar com uma caverna. Nessa caverna, residiam seres míticos descendentes de répteis e a Shahmaran, criatura metade mulher e metade cobra. Çamsap se apaixona por Shahmaran, porém eventualmente lembra que tem uma família fora da caverna e mete o pé, deixando para trás a promessa de que jamais revelará a localização desse Jardim do Éden habitado apenas por cobras. Como é da natureza do homem ser mentiroso, Çamsap revela a localização para o pessoal da corte quando o rei adoece e descobre-se que a única cura é um ensopado da cauda de Shahmaran. Nessa jornada culinária, embarcam o homem mentiroso e o vilanesco vizir do rei. A mulher-cobra sabia que isso aconteceria, por isso instrui seu antigo amante a cozinhá-la para o rei, oferecer o restante de sua cauda ao vizir e comer sua cabeça. Çamsap obedece e recebe, através do consumo de Shahmaran, toda a sabedoria das cobras. Vale ressaltar aqui que o nome Shahmaran literalmente significa “xá das cobras”, “xá” sendo o título que era dado aos monarcas muçulmanos até 1979.
A série da Netflix oferece uma releitura da mitologia turca-curda e transforma Shahmaran numa figura protetora e messiânica. Os Basiliscos da história se agitam com a chegada de Shahsu, pois esse seria um dos sinais do retorno de Shahmaran e marcaria o início de uma era de harmonia e prosperidade na comunidade. Maran também tem um papel nessa profecia religiosa, porém nada é revelado abertamente até o último episódio. Mas, de modo geral, somos forçados a interpretar as sombras na parede e tentar conjurar um enredo que faça sentido com apenas fragmentos.
É difícil explicar exatamente o que achei da série. O estabelecimento de uma relação entre a destruição da natureza, desconexão com a ancestralidade e com a terra (nação, vilarejo, comunidade) é interessantíssimo. Até certo ponto, a história tenta tecer comentários sobre feminilidade a partir de temas como egoísmo, sacrifício e independência/liberdade, mas, antes que a discussão se torne produtiva, essa linha de raciocínio é interrompida. O mesmo ocorre com os elementos mais abjetos do enredo (que, curiosamente, não são poucos). A Netflix para um pouco antes de tudo ficar nojento demais ou se tornar Antigo Testamento demais, algo que achei prejudicial no desenvolvimento da ideia principal da série. Os momentos nauseantes são tão espaçados que parece que de vez em quando o diretor quer chocar a audiência e não construir um universo mitológico. O grande problema de A Lenda de Shahmaran é justamente essa falta de comprometimento. A série tem oito episódios que são insuficientes, mas entediantes. A lenda deveria ter sido explicada desde o começo para as audiências que não conhecem o folclore da região ou ter sido gradualmente introduzida com mais cuidado, a conexão de Shahsu e Maran deveria ter sido explorada com mais intensidade (e com mais sexo, visto que a série alude a essa questão incansavelmente e de maneiras criativas, porém consuma com muita pressa), e a Shahsu em si deveria ter sido mais desenvolvida para além de seus delírios relacionados ao mundo das cobras (nós não sabemos nada da vida dela em Istambul!). Os vilões são meio caricatos às vezes, assim como o pai de Maran, e oferecem um alívio cômico em momentos nos quais isso não é necessário.
Um ponto alto é a cinematografia, que procura intensificar a sensação sufocante do verão em Adana com tons escaldantes de bege e os perigos noturnos com azuis profundos, geralmente em contraste com branco, que é a cor de Shahsu. Achei a paleta de cores extremamente agradável aos olhos e todos os cenários muito bonitos. Outro destaque é a excelente trilha sonora, muito bem executada e produzida. Os efeitos especiais também são bem feitos (escamas douradas em mulheres-cobra são bem slay, se me permitem a palavra). Aproveito também para deixar um abraço ao avô de Shahsu, que em minha opinião é o personagem mais intrigante da série.
De modo geral, se você gosta de doutorandas, psicólogas, homens sobrancelhudos, cobras, proteção ambiental, lindas paisagens, abandono de incapaz, relações sem química, histórias cujo enredo é um segredo, fumar um cigarro na janela e fofocar sobre a vida dos vizinhos, recomendo muito.
5.5/10