a geração d de damares tá lendo erótica no kindle
Após assistir todas as comédias românticas já produzidas por Hollywood, resolvi assistir algumas turcas. Variar impede o cérebro de envelhecer, etc. Infelizmente a experiência foi derivativa e dolorosa. Comédias românticas turcas são, em grande parte, releituras de suas antecessoras hollywoodianas (Como Perder Um Homem em 10 Dias, Hitch), porém nenhum dos atores têm química. Claro, todos os casais são inacreditavelmente bonitos, com mandíbulas meticulosamente definidas por aplicações cronometradas de botox, mas, em cena, é como se manequins estivessem tentando fazer o ato de se apaixonar não parecer uma tática ancestral de tortura. Não funciona, é lancinante. E óbvio que é sintomático. A “questão da falta de química”, que assola as mais diversas criações artísticas, é na verdade a “questão da falta de erotismo”. E ela vem do apreço moderno pela palatabilidade e previsibilidade, que vem do marketing, que vem do… TikTok? É, é mais ou menos isso. Imagine-se na cena do crime, é o TikTok que está segurando a faca ensanguentada. Tudo é culpa do TikTok. Nós vivemos numa sociedade.
Para explicar o que estou querendo dizer, iremos percorrer uma jornada longa, porém recompensadora. Primeiro, começarei minha argumentação com uma breve análise do que é Young Adult e da participação do BookTok em sua popularização. Depois, abordarei a fanficalização da literatura e a ideia de arte como criação de conteúdo. Pararemos por alguns instantes em erotismo e falta de química para então finalmente chegarmos à Geração D de Damares e à onda recente antissexo na TV. Sei que estou pedindo muito de você. Ler? E tudo isso ainda? Pense nessa atividade como uma imersão na cultura arcaica. Pegue sua toga, sua camiseta de alguma banda de 2014. Eu sei que você consegue.
Vamos lá.
EDWARD CULLEN COMPRANDO GLITTER PARA O CARNAVAL: O YOUNG ADULT E O CAPITALISMO
O Young Adult (YA) é difícil de definir. Simultaneamente visto como subgênero literário e rótulo de marketing, ele abrange livros de diversas temáticas (paranormal, mistério, fantasia), porém sua estrutura é dependente de romance. Amanda Allen tenta delimitar essa misteriosa terra, argumentando que são “textos lidos por pessoas jovens, escritos para pessoas jovens, publicados para pessoas jovens e distribuídos para pessoas jovens”. Ela aponta que a definição de “pessoas jovens” é outra problemática para acadêmicos do assunto, já que termos como “criança” e “adolescente” dependem do contexto sociohistórico de cada lugar. Iremos ignorar isso, já que atualmente YA é lido de uma maneira universal que transcende faixas etárias. Foquemos na última parte, “textos distribuídos para pessoas jovens”. Allen mostra que a leitura de YA possui intermediários, figuras de poder que entregam esses livros nas mãos dos leitores. Isso acontece porque o YA é estreitamente ligado ao avanço do capitalismo americano.
Em 1996, Michael Cart escreveu From Romance to Realism: 50 Years of Growth and Change in Young Adult Literature. Na obra, ele analisa a expansão do gênero/rótulo durante a década de 90, notando que, durante os anos de 1960, o YA era institucional, um tipo de livro distribuído em escolas para ajudar no processo de formação do aluno, o intermediário sendo o professor. Porém, essa função eventualmente desaparece e o intermediário se torna o Mercado (sons fantasmagóricos ao fundo). O que Cart descobre com esse levantamento da cronologia do Young Adult é que a sua expansão se deve a combinação de: surgimento de franquias de livrarias + o conceito emergente de originais de capa dura + mercado pouco explorado (os jovens de idade indefinível). A figura do intermediário humano desaparece também, já que “os originais de capa dura são comprados pelos próprios adolescentes”, e o que é vendido como YA se torna uma decisão feita exclusivamente pelos donos das franquias. Basicamente, se está na estante de YA é porque é YA.
Esse contexto é importante para analisarmos o Young Adult hoje e o BookTok. Esse gênero sempre foi majoritariamente consumido por mulheres e, se no início dos anos 1960 quando surgiu cumpria o papel de socializador e instrumento pedagógico, agora funciona como escapismo, simples entretenimento e gerador instantâneo de likes. E, se no final da década de 1990 quem decidia o que era YA era um senhor de bigode ditando o que empilhar num estande, hoje é o BookTok (sons fantasmagóricos ao fundo), o segmento leitor do TikTok.
Uma matéria recentemente publicada pelo Slate apontou um crescimento estratosférico na comercialização de YA por causa do TikTok. Segundo eles, o número combinado de vendas de autores mencionados no BookTok nos EUA mais que dobrou em 2021, e, até julho de 2022, viu um aumento de mais 50%. O tipo de YA que mais cresceu foi obviamente o romance. Esses dados fizeram com que presidentes de editoras se voltassem ao TikTok e passassem a considerá-lo como algo importante ao adquirir direitos autorais para a publicação de uma obra. O pessoal do Slate entrevistou a Libby McGuire, da Simon & Schuster, que comentou que, ao ler certos manuscritos, pensa, “nós conhecemos esse leitor; sabemos onde encontrá-lo no TikTok. Nós conseguimos ver para qual mercado [o manuscrito] apela”. Mas como? Como que o BookTok conseguiu tudo isso? Essa credibilidade, essa função de intermediário?
A resposta é simples: tropes.
EDWARD CULLEN COMPRANDO CORDA EM 50 TONS DE CINZA: TUDO É FANFIC AGORA?
Tropes sempre foram prevalentes em YA, cuja estrutura é, desde a concepção, baseada em fórmulas e repetições. É parte do charme. Porém, tropes são essenciais para fanfics. Henry Jenkins, ex-diretor do programa de Estudos de Mídias Comparadas do MIT, afirma que “fan-fiction é uma forma da cultura reparar o dano causado por um sistema onde os mitos contemporâneos são propriedade de corporações ao invés de propriedade do povo”. Se fanfics são nossos contos folclóricos e os fóruns onde postamos são a fogueira metafórica ao redor da qual nos reunimos, então é evidente que precisam seguir as prescrições ilógicas de contos folclóricos, as mesmas estruturas rígidas. Inimigos, amigos e colegas de quarto se apaixonam, é inescapável. Em todo hotel há apenas uma cama. Pessoas arrumam almas gêmeas de mentirinha para eventos. E assim o mundo gira.
Mas e se, ao invés de prevalentes, as tropes se tornassem necessárias para o YA? E se toda história que você lesse fosse a mesma história, só que não com personagens que você ama e conhece, e sim estranhos?
Foi basicamente esse o efeito do BookTok.
Eu já reclamei diversas vezes da necessidade de tudo se tornar uma estética ou um rótulo que o TikTok incutiu na cultura moderna. No BookTok, por exemplo, você consegue encontrar hashtags que separam livros por tropes. Enemies to lovers, friends to lovers, only one bed. Isso causou o boom nas vendas de YA, porque é uma estratégia de marketing brilhante. Você não precisa mais abrir o Google para pesquisar o que quer ler como um fenício, tudo já está categorizado no TikTok. A editora não precisa te dizer o que tem no livro que ela quer te vender, alguém já fez isso por ela. De graça! E, melhor ainda, é possível saber exatamente quantos milhões de pessoas se interessaram pelo assunto. De graça! Mesmo quando o usuário do BookTok não está preocupado com a trope, ele está preocupado com a estética, então female manipulator books também é pesquisável. É óbvio que as editoras amam o BookTok, vender nunca foi tão fácil. Milhares de pessoas se tornando intermediárias? De graça? Só pode ser um milagre!
Voltemos às tropes. Ali Hazelwood, autora de A Hipótese do Amor, deu uma fatídica entrevista na qual confessa não saber escrever livros (achei corajoso da parte dela afirmar isso) e que sua editora a guiou no processo de criação, utilizando tropes. Literalmente, “ah, eu adoraria ler um rivals to lovers que se passa num ambiente acadêmico!”. Escrever assim é escrever um livro ou uma fanfic? O Dean Winchester, primeiro ômega do universo ABO, faz uma aparição nessa obra?
Embora defensores argumentem que fanfic é literatura, essa é uma discussão cansada. Há mérito artístico, claro, mas fanfic é inegavelmente… conteúdo. Ferramenta de socialização com mérito artístico, mas conteúdo. Aí você me olha e me pergunta: o que é conteúdo, pelo amor de Deus? O conteúdo é parte de uma transação, no sentido literalmente monetário ou no sentido figurativo, onde validação é uma moeda. Você posta fanfic e recebe feedback instantâneo, você posta fanfic e três pessoas da Noruega podem te pagar uma quantia generosa pelo Paypal. A fanfic não existe num vácuo, a participação do leitor é ativa: há reclamações, elogios, sugestões, votos e compartilhamentos. O livro, por sua vez, é produzido longe dessa troca, longe da ideia do consumidor. Nenhum autor senta a bunda na cadeira pensando, “o que será que a Vitória, moradora de Piraporinha do Bom Jesus, quer ler hoje?” ou “o que será que o mercado precisa?”. Exceto que… sim, aparentemente isso acontece agora. Foi isso que Ali Hazelwood fez, não foi? Ela não tinha um tema e nem uma mensagem muito importante que precisavam de formalização. Ela tinha uma editora que pediu para ela escrever uma trope. Isso é arte ou conteúdo? Quando a sua arte não é estruturada por você, é perfeitamente criada para agradar um algoritmo, viralizar e enriquecer uma corporação, ela é arte? Ou ela é conteúdo, no sentido Instagram da palavra? Será que seu livro não é, então, como uma foto de biquíni promovendo depilação a laser?
Eu não tenho nada contra tropes. O que estou questionando é esterilização da literatura, o apagamento do processo artístico envolvido na escrita de um livro. Se hoje a maioria dos livros pode ser enquadrada como YA (porque o gênero é muito amplo), e o YA foi reduzido à lógica mercantilista de categorização do TikTok, a literatura está sendo despida de seu potencial transgressor e subversivo.
Você pode argumentar, então, que YA nunca foi subversivo, mas isso não é 100% verdade. Lembremos que o YA é consumido, em grande, por um público feminino e que aborda questões de formação (coming of age) e sexualidade desse público. Como argumentam Hannah McCann e Catherine Roach, o YA recebe até hoje muitas críticas justamente por se atrever a pintar uma imagem de feminilidade que abarca a esfera sexual e por, além disso, ter como foco o prazer feminino, mesmo que implicitamente. Isso é sim subversivo e um pouco revolucionário.
Além disso, McCann e Roach detalham em seu artigo justamente a necessidade do sexo (ou da ideia dele) no YA. Se não acontece no decorrer da história, é uma promessa no horizonte, um brinde que vem junto ao obrigatório final feliz. É parte da satisfação emocional que caracteriza obras do gênero. Todos nós lembramos de Bella e de Edward, da luta para que chegassem aos finalmentes. Mas, além do ângulo feminista e psicólogico, sexo vende. No momento, por exemplo, apenas três livros do top 50 de eBooks da Amazon não são de smut.
Apliquemos a lógica anterior agora ao conteúdo sexual. Se os autores estão desenvolvendo livros em laboratório para perfeitamente se enquadrarem numa trope, a cena de smut desse livro também vai ser desenvolvida em laboratório. O casal foi desenvolvido em laboratório. Tudo foi criado com um nível de meticulosidade absurdo para ser palatável e vendável. Não há um tema, não há algo a ser dito, é discutível se os personagens têm personalidade. São livros alimentando uma hashtag numa rede social. Você acha isso sexy? Qual a probabilidade de os protagonistas terem química nessas condições?
TIROU O MEU EROTISMO ME DEIXANDO APENAS DE INDIVIDUALISMO: CADÊ A QUÍMICA DO PESSOAL?
Voltemos às comédias românticas turcas, onde todos são perfeitamente esculpidos por finas agulhas de botox e meticulosamente desprovidos de química. De maneira similar ao YA, elas são construídas em laboratório, porém, nesse caso em particular, com o objetivo de vender nostalgia pelos clássicos hollywoodianos. As comédias românticas turcas, como disse inicialmente, são sintomáticas da transformação da arte em conteúdo. Lembremos por um instante daquela entrevista de Martin Scorsese na qual ele compara filmes da Marvel a um parque temático, afirmando que o universo cinemático não se enquadra no “tipo de cinema no qual seres humanos estão tentando transmitir uma experiência emocional, psicológica para outros seres humanos”. É verdade. Quando a Marvel e a Sony lançaram um filme com três homens-aranhas, o objetivo era satisfazer o cliente. Colocá-lo, por assim dizer, dentro de um carrinho e acender a tela 3D para que ao final ele saísse sorrindo e quisesse repetir a jornada. Após ser massacrado, Scorsese escreveu um texto para o New York Times explicando detalhadamente o que quis dizer com sua fala na entrevista. Ele termina dizendo que a situação atual é “brutal e inóspita à arte”. E, novamente, é verdade. Porque, assim como o YA, o que é majoritariamente exibido no cinema ou incessantemente vendido por plataformas de streaming não é algo que tenta transmitir a experiência humana. É algo plástico, estéril. Por isso ninguém tem química e poucas obras do mainstream conseguem ser de fato eróticas.
O erótico, como define Anne Carson em Eros the Bittersweet, depende da falta, já que desejar o que possuímos é impossível. Ela argumenta ainda que o real tema da maioria dos poemas românticos não é o amado, mas sim um buraco no amante, pois “a presença do desejo desperta nele uma nostalgia por completude”. Georges Bataille, conhecido por sua extensa obra analisando o erotismo, o define em Erotism, Death and Sensuality como algo “psicológico e desprovido do objetivo da reprodução da espécie”. Para Bataille, o erotismo é a procura de uma fusão que tenta apaziguar o fato de seres humanos serem descontínuos, ou seja, separados um do outro pelo abismo da individualidade. A definição de Bataille abrange sexualidade, violência e religião, três esferas onde noções delimitadas de identidade são perturbadas. É interessante notar que tanto Carson quanto Bataille ressaltam a incompletude do indivíduo, a busca por algo como parte central da experiência erótica e, consequentemente, humana.
Agora imagine só viver num período específico da história do planeta no qual o individualismo está em ascensão meteórica e no qual toda e qualquer forma de dependência é vista como inerentemente errada. Agora imagine só viver num período específico da história do planeta no qual a única coisa celebrada é a separação. Você é você, eu sou eu, e nós somos retas paralelas. Nós não precisamos um do outro… certo?
Óbvio que não.
Mas, continuando esse exercício, imaginemos também que todos os personagens sendo criados de maneira laboratorialmente mercantilista reproduzam essa lógica. E se, em toda comédia romântica e filme da Marvel e série da Netflix, todos os personagens fossem unidimensionalmente perfeitos ou seus defeitos fossem inacreditavelmente rasos? E se eles fossem desprovidos da falta? Como seria possível retratar convincentemente qualquer forma de desejo?
Bem… não seria.
DESLIGANDO A TELEVISÃO E LIGANDO O KINDLE
Semanalmente, alguém resolve tweetar sobre a falta de sentido de cenas de sexo em livros, filmes e séries. Semanalmente, o termo “geração D de Damares” é revisitado. Tudo isso é muito curioso, especialmente se relembrarmos o que mencionei na parte 2 desse texto. Citando-me, “no momento, por exemplo, apenas três livros do top 50 de eBooks da Amazon não são de smut”. Nenhum desses títulos é particularmente discreto sobre seu conteúdo e a quantidade de vendas me faz pensar que… A geração D de Damares, além de reclamar no Twitter, está fantasiando sobre Síndrome de Estocolmo e CEOs. É praticamente impossível, considerando os Números, que não haja convergência. Mas isso não é da minha conta. O que é da minha conta (nem tanto) é a existência do discurso “vamos vestir todos os atores de Hollywood e impedi-los de se olhar com cobiça” ao mesmo tempo em que o gênero ocupando o trono de vendas na Amazon é literalmente pornô escrito.
É fascinante. É quase como se tivéssemos dividido tanto as coisas por hashtags que agora toda faceta da vida humana precisa ser perfeitamente categorizada em seu devido gênero. É quase como se estivéssemos produzindo em massa obras tão vazias que o sexo em um livro pornô tem a mesma profundidade erótica que o sexo numa cena de um filme que supostamente te conduziu por uma jornada emocional. Então por que você iria querer ver cenas de sexo em filmes? Você pode simplesmente abrir o TikTok, digitar uma hashtag com a sua trope (fetiche?) de preferência, escolher um livro recomendado e comprá-lo na Amazon com entrega imediata. Ou você pode abrir um site de pornografia, a entrega também é imediata.
A diferença da arte e do conteúdo é a humanidade, mas nós estamos impiedosamente tirando a humanidade da arte, tirando o erotismo. Meu objetivo não é apontar o crescimento do conservadorismo e as implicações disso na arte, outras pessoas já fizeram melhor (por exemplo, o Ora Thiago). Meu objetivo é apontar que talvez a geração D de Damares esteja certa ao dizer que cenas de sexo não fazem mais sentido em filmes e que isso é assustador, porque elas deveriam fazer. Além de a sexualidade fazer parte da experiência humana, ela também é, como sugere Eva Illouz, “o veículo através do qual normas sociais são definidas”. Por isso, sua representação artística é essencial. Por isso também que sua representação artística não pode se desligar da natureza complexa e imperfeita dos seres envolvidos na representação. Senão, seremos deixados apenas com conteúdo. Esteticamente prístino, inacreditavelmente acessível e inegavelmente específico. Uma cena de sexo só para você, entregue pelas grandes mãos invisíveis do mercado.
CITADOS
BATAILLE, Georges. Death and Sensuality: A Study of Eroticism and Taboo. Nova York, Walker and Company, 1962.
CARSON, Anne. Eros the Bittersweet. Nova Jersey, Princeton University Press, 2014.
Todos os artigos citados fazem parte do The Routledge Research Companion to Popular Romance Fiction. Londres & Nova York, Routledge, 2021.