virgin: para bom entendedor, meio raio-x basta
É verdade que julgo a Lorde. Desde o fatídico lançamento de Solar Power (2021), a maior parte das palavras pronunciadas pela cantora me causam calafrios de constrangimento. Coisas tão desconectadas da realidade que só podiam vir de uma neozelandesa escorpiana milionária apelidada aos dezesseis anos de “voz de uma geração”. Com a chegada de seu quarto álbum de estúdio, Virgin, me preparei para o pior, pois tudo apontava para um desastre de proporções bíblicas: as matérias jornalísticas, as breves notas escritas em gritantes maiúsculas com os lançamentos dos singles, a exploração da ideia de explorar performances de gênero. Na noite anterior ao lançamento de Virgin, despretensiosamente cliquei na entrevista que a artista concedeu ao podcast da Apple Music e em alguns minutos já havia pagado a língua. Não digo que as translúcidas músicas dançantes sejam o magnum opus de Lorde (esse título ainda pertence ao Melodrama), mas a honestidade dos versos e a escassez da produção tornam a obra certamente… interessante. E, leitor, faz muito tempo desde a última vez em que a Lorde foi interessante.
Numa tarde irlandesa chuvosa e fria (ou seja, típica), li o perfil que a revista Rolling Stone fez de Lorde, cujo subtítulo era dolorosamente “sou uma vadia intensa”. É nesse texto que aparece o horripilante comentário da cantora sobre a sex tape de Pamela Anderson e Tommy Lee, evento muito traumático na vida de Anderson. Ela revela que assistiu o vídeo inteiro e que o achou “tão bonito”, emendando o elogio com banalidades sobre o perigo de ser livre. Lorde conta que, com a chegada dessa nova era artística, muitos não irão mais vê-la como uma “boa garota”, o que achei particularmente engraçado já que nunca na minha vida me ocorreu utilizar essas duas palavras para descrevê-la. A jornalista também comete algumas gafes, como falar que a cantora está desaprendendo a ser palatável, o que é uma espécie gritante de revisionismo histórico visto que Lorde falou mal de todas as celebridades possíveis e imagináveis na adolescência. Eu argumentaria, na verdade, que ela está aprendendo a ser palatável agora — basta observar a quantidade de novas amigas aleatórias (Gracie Abrams). Durante toda a conversa, a ex-boa-garota parece tentar digerir sua fama. Na entrevista já mencionada para a Apple Music, o mesmo ocorre. Ela comenta com Zane Lowe que o Solar Power foi uma tentativa de separar sua persona midiática de sua realidade como uma Pessoa Normal: as praias da Nova Zelândia seriam o conforto do cotidiano, as cidades o perigo dos tabloides. Virgin não é separatista assim, mas o conflito ainda é o mesmo. Lorde luta com o que significa ser vista, seja pelas massas, por sua família ou por seus ficantes. Eis a ideia de transparência.
Virgin não é um álbum conceitual, mas possui um manifesto. Lorde fala disso em outro podcast (chega!). Os sons são econômicos (tudo aparece mais de uma vez, os vocais são intimistas, as notas mudam pouco), a duração é curta (ela não quer ocupar muito tempo da vida do ouvinte) e a ideia é expor o lado nojento da feminilidade de modo a problematizar o significado da palavra. A transparência aqui significa honestidade e se manifesta de forma física, como, por exemplo, nos discos de vinil, nos CDs e nas roupas da cantora. Para além de honestidade, líquidos corporais transparentes (como o suor) também figuram no imaginário do álbum. Essa é uma proposta brilhante e, que se bem executada, teria sido capaz de mudar milhões de vidas. Porém, a grande questão é que nem todo mundo consegue cativar quando começa a falar só verdades e Lorde, que notoriamente não possui carisma, às vezes causa exaustão ao musicar o que tanto quer nos dizer. Acontece.
O álbum começa com “Hammer”, melhor e mais recente single do projeto. Lorde explora ficâncias, ovulação e masculinidade, concluindo que está em paz com ainda não ter todas as respostas da vida adulta. Vejo o estilo da composição como uma versão ruim do que Phoebe Bridgers consegue fazer, no sentido em que a artista vai soltando uns versos específicos sobre qualquer coisa bem no estilo de Bridgers (“hoje irei até a Rua Canal, eles irão furar minhas orelhas”) mas que falham em acrescentar algo ao que a canção quer dizer de fato. A produção aqui é ótima, meio industrial, mas sem ser muito barulhenta. A próxima é “What Was That”, o primeiro single. Gosto mais agora do que quando ouvi pela primeira vez, mas os versos ainda me causam um enorme constrangimento. Apesar disso, acho colocar um ponto de interrogação num relacionamento inteiro um jeito inovador de lidar com um término. No mais, a produção me lembra o clássico “Festa no Apê”, de Latino (ou seja, “Dragostea Din Tei” dos O-Zone).
“Shapeshifter” é facilmente a melhor do álbum e uma das melhores da carreira de Lorde. A escrita melhora exponencialmente aqui, assim como a produção. No pós-término, nossa menina utiliza sexo como uma forma de validação, nunca deixando ninguém se aproximar, escolhendo não compartilhar nada pessoal demais. É visceral, oferecendo uma autocrítica inconclusiva com o ambíguo verso “e hoje à noite eu só quero cair/me apaixonar” (“and tonight I just wanna fall”). Ao final de uma produção que não traz gratificação alguma, ficamos suspensos na dúvida se o eu-lírico está disposto a se permitir um novo amor ou se apenas deseja cair libidinosamente de seu pedestal. Esse é um nível de complexidade que poucas músicas do Virgin conseguem atingir novamente. Aproveito para destacar que Lorde afirmou ter se inspirado na instalação de arte Everyone I Have Ever Slept With de Tracey Emin.
“Man of the Year”, o segundo single do projeto, marca o instante em que Lorde percebe que ela é o Homem do Ano em sua própria vida. É um inventário de mudanças atormentado por um segundo verso ligeiramente cômico, no qual as atividades masculinas da cantora incluem fazer gargarejo com Listerine, se masturbar e acordar tarde. Sinceramente? Imagino que masculinidade seja mais ou menos isso mesmo. Gosto dos vocais frágeis e da produção que se expande, é um dos pontos altos do álbum sonoramente. Em “Favorite Daughter”, ela tira o vestido do armário para ser uma boa garota mais uma vez. Refletindo sobre seu relacionamento com a mãe e com a fanbase, Lorde confidencia ao ouvinte que faz de tudo para ser amada, para ser a favorita. O segundo verso é ótimo, com a cantora revelando a impossibilidade de conhecer totalmente a mãe. O problema aqui é a produção, que soa como um descarte meio barulhento do Jack Antonoff e afoga a profundidade da letra. Na primeira vez que ouvi, fiquei esperando uma arara gritar ao fundo, como é de costume nas faixas do cofre de Taylor Swift produzidas por Antonoff.
“Current Affairs” é controversa desde antes do lançamento de Virgin. Havia uma relutância em aceitar a letra como realidade nas redes sociais. Eu entendo. Ler aquelas palavras soltas foi como ser empurrada para cima de uma casca de banana. Felizmente, não é uma canção criminosa. Apaixonada outra vez, Lorde relata a intensidade da nova ficância para sua mãe nos mínimos detalhes. Acho os versos “você provou a minha calcinha/eu sabia que estávamos fodidos” bem imagéticos (tom elogioso), mas a cantora vender o ato de lamber um tecido como disruptivo me arrancou algumas risadas. No perfil da Rolling Stone, Lorde menciona essas passagens ao falar do Grotesco. Oi…? Vamos com calma. Enfim. A interpolação de “Morning Love” do Dexta Daps se encaixa perfeitamente na faixa, além de acentuar a leviandade atribuída à relação pelo ficante de Lorde. Adoro a produção aqui, acho dinâmica, texturizada. A voz de Lorde está em um dos seus melhores momentos. A próxima é “Clearblue”, concorrente de “Shapeshifter” na disputa de melhor do álbum. Com vocais distorcidos, Lorde narra o processo de fazer um teste de gravidez, expondo suas inseguranças perante a nudez do sexo. É, sem dúvida alguma, a composição mais forte de Virgin, com metáforas sobre metais puros e alusões a hélices de DNA. A jornada é acentuada pela produção orgânica esparsa, que acompanha o ritmo da história com ondulações, crescendos e, ao final, um silêncio meio robótico. Assistimos Lorde aceitar a gravidez enquanto espera o resultado aparecer no teste (o clearblue, que nomeia a faixa) e depois lidar com o fato de que deu negativo. Ela conclui que deveria ter guardado a embalagem de qualquer maneira, um lembrete de quando esteve “tão viva”. “Clearblue” é talvez a única faixa em todo álbum na qual a decisão de Lorde de trabalhar unicamente com o produtor Jim-E Stack não pareça ter sido uma ideia mirabolante: a paleta de sons é reciclada (álbum econômico, lembra?) mas agrega muito ao que está sendo dito.


“GRWM” é um susto de filme de terror. Nenhum verso aqui é bom, muito pelo contrário. Tudo é comicamente raso, com Lorde se descrevendo como uma mulher de “quadris largos, dente lascado, 96, pele com cicatrizes, olhando para o futuro”. O pior de tudo é que a frase central da canção é “uma mulher madura numa camiseta baby look”. Não é possível articular o constrangimento que senti quando ouvi esse pequeno crime pela primeira vez. A produção é dinâmica, mas se parece com todas as outras. Não há nada aqui a ser salvo, infelizmente. Em “Broken Glass”, Lorde lida com seus distúrbios alimentares. Para mim, a produção também não funciona muito bem aqui — é uma situação parecida com “Favorite Daughter”, na qual a barulheira parece afogar as palavras. Gosto muito do modo como Lorde trabalha a ideia de quebrar o espelho, titubeando entre a noção de má sorte e a realidade física do objeto. Em sua entrevista para o G1, a cantora menciona “Grapefruit” de Tove Lo como uma música que lhe marcou durante um período complexo de sua vida e dá para notar a influência de Tove em “Broken Glass”, desde partes da produção até a maneira como as palavras são distribuídas nos versos.
“If She Could See Me Now” é similar a “GRWN” em sua criminalidade, ganhando de lavada a competição de piores versos do álbum. Como mencionei anteriormente, não acho a Lorde uma pessoa carismática e palavras como as que aparecem nessa canção só funcionam se a pessoa tiver um certo sarcasmo lúdico, uma capacidade de fazer piada consigo mesma e de rir junto ao ouvinte. Infelizmente, tons irônicos não caem bem em Lorde e a frase “porque eu sou uma mística nado em águas que afogariam outras vadias” acaba soando como um soco no estômago do bom gosto. Isso sem contar a absurda sentença “eu tiro a dor do sintetizador”. Para conseguir prestar atenção na produção (que é deliciosamente sofisticada), tive que forçar meus neurônios a ignorarem a letra. Também não há muita coisa salvável por aqui. Por isso, quando chegamos na excelente “David” é outro susto. Quase impossível de compreender que é a mesma pessoa segurando a caneta metafórica. Nomeada em homenagem à estátua homônima de Michelangelo, a canção reconstrói os sentimentos de Lorde pós-término. Ela questiona as intenções de seu ex-namorado (o executivo Justin Warren, diretor de marketing da Universal Music da Nova Zelândia), afirmando tê-lo tornado uma espécie de deus e, ao final, decidindo que não pertence a ninguém. Os sentimentos de “propriedade” aqui são duplamente complexos, já que existe uma dimensão profissional no relacionamento. “David” acaba em harmonias após um curto crescendo, com Lorde se perguntando se irá amar novamente. O último verso — “conte para eles” — é um comentário metalinguístico sobre a natureza do álbum, que reconta o relacionamento terminado, mas também captura o fato de que Lorde está amando novamente (dessa vez, o produtor Jim-E Stack, seu colaborador no Virgin). Achei um acréscimo particularmente genial, uma reflexão sobre a honestidade e transparência que o álbum promete que já puxa o gancho para um replay. A produção aqui é excelente e a transição para “Hammer” é suave, orgânica.


De modo geral, gostei mais de Virgin do que inicialmente imaginei. Em seu predecessor, há uma certa imaturidade e teimosia no que diz respeito ao mundo real, mas aqui a vida é complicada, tensa e eufórica. No meu texto sobre wellness pop, falei um pouco sobre como essa nova sonoridade da Lorde marcava um retorno ao corpo e ainda me sinto dessa maneira. É um álbum quase físico que captura a estranheza de ser uma mulher na modernidade e que discute as várias formas de ser uma mulher na modernidade. Mesmo assim, acho Virgin um projeto ambicioso que acaba se autossabotando. A ideia de economia sonora e lírica é um tiro que sai pela culatra, prejudicando a qualidade da maioria das faixas. Na entrevista para a Apple Music, Lorde fala sobre barrar Jim-E Stack de acrescentar novos sintetizadores e instrumentos na obra. Fico me perguntando o que teria sido de “Favorite Daughter” se o produtor tivesse utilizado mais ferramentas. Fico me perguntando o que teria sido de “GRWM” e “If She Could See Me Now” se Lorde tivesse aberto um dicionário na hora de escrever ao invés de reciclar palavras de legendas do Instagram. Algumas canções do álbum irão seguir aprisionadas em meus fones, outras irei fingir que não conheço. É a vida. Mas permitam-me concordar rapidamente com Lorde: Virgin é sim um recomeço. Mais do que isso, é um interessantíssimo passo na direção certa. Finalmente!
Se você gosta de camisetas estampadas com estêncil de raio-x, de não lavar muito o cabelo, de ficar em casa fazendo absolutamente nada que nem homem solteiro em dia de semana à noite, de saltitar pela cidade grande, de andar de bicicleta, de fumar cigarros fedidos para impressionar homens mais velhos, de mudar de personalidade aleatoriamente, de vestir calças jeans largas e camisetas furadas, e de tratar seu celular como uma entidade mística, recomendo muito.
7/10