radical optimism: manifestando o pior álbum da carreira
Em dezembro do ano passado, dentro de um Uber a caminho da Bienal de Arte de São Paulo, dois amigos me perguntaram qual era a personalidade da Dua Lipa, de quem sou fã desde 2017. Essa pergunta me intrigou por inúmeras razões, a mais gritante sendo que, mesmo depois de sete anos acompanhando viagens e mudanças capilares, não sabia respondê-la. Ninguém sabe. Quando o ciclo de entrevistas sobre o terceiro álbum de estúdio de Lipa começou, ela insistia no fato de que havia aberto o coração nas letras, expondo seus momentos mais vulneráveis. Além disso, o misterioso álbum, que até então não possuía um título, misturaria Britpop, cultura de rave e rock alternativo (mais especificamente a dupla Primal Scream). Basta ter ouvidos e olhos para perceber que as afirmações se tratavam de mentiras. E tudo bem! Eu acho que mulheres mentirosas são subversivas e inerentemente feministas em sua manipulação da realidade. Mediocridade, porém, é algo que já considero indefensável.
Tudo começa a dar errado para Dua Lipa quando o nome e a capa do álbum são anunciados. Radical Optimism nos mostra a cantora no oceano, tranquila e elegante, encarando um tubarão. A ideia, explicada posteriormente, era condensar o ethos de perseverança e coragem da obra naquela imagem. Talvez o tubarão pegue Dua, mas talvez ela pegue o tubarão primeiro e o transforme numa bolsa. O problema é que, até então, o Radical Optimism tinha dois singles bem destoantes do conceito praiano. A campanha publicitária, encabeçada pelo pai e empresário de Lipa, Dukagjin, foi um desastre de proporções bíblicas — vale lembrar que os encartes dos vinis foram postados na íntegra no site da cantora, revelando com dois meses de antecedência todas as letras do álbum. De certa maneira, o projeto tinha tudo para dar errado… e deu. Manifestação?
Radical é produzido por Kevin Parker, conhecido como Tame Impala, Danny L. Harle (Pang e Desire, I Want To Turn Into You) e Andrew Wyatt (trilha sonora de Barbie). As letras, como é comum e esperado de projetos de Lipa, são escritas por dezenas de pessoas, entre elas Caroline Ailin, Ian Kirkpatrick e Tobias Jesso Jr. É absurdo que esse time impressionante de colaboradores tenha se reunido para lançar um mini-álbum (são apenas trinta e seis minutos de duração, afinal) esquecível, constrangedoramente mediano e tão profundo quanto uma piscina infantil.
A primeira faixa já nos apresenta os problemas que assombrarão o resto da obra, começando pela temática do Radical Optimism. Não há nada mais desinteressante do que uma pessoa otimista. O que é interessante é a trajetória da pessoa até o otimismo, mas o plateau dela num mundo cor-de-rosa onde tudo é possível e o destino opera de maneiras misteriosas e favoráveis? Não, isso chega a ser revoltante de tão tedioso. “End of an Era” nos mostra Dua Lipa adentrando o mundo da privatização dos afetos e efetivamente deixando a pista de dança, local que costumava ser seu habitat (“mais uma garota se apaixona/mais uma garota sai da balada”). Sonoramente, a canção possui um tom psicodélico meio colorido, leve, mas que não é muito memorável. Destaco aqui as partes faladas, que aparecem outras vezes no decorrer do álbum e que nunca soam naturais.
A próxima é o primeiro single do projeto, “Houdini”, lançado em novembro do ano passado. Vejam bem, inicialmente fui um pouco contrária a “Houdini”, não pela razão batida do “soa como descarte do Future Nostalgia”, mas porque soava anticlimática, mesmo em seus momentos mais luxuosos (como, por exemplo, o intervalo instrumental antes do último refrão e logo depois dele). O tempo, entretanto, inocentou a faixa e hoje é evidente que é umas das melhores de Lipa. Creio que, em parte, o que tenha ajudado a sedimentar a genialidade de “Houdini” tenha sido a apresentação ao vivo no Grammy e sua versão das London Sessions. Entramos aqui em outra camada dos problemas de Radical Optimism: Dua Lipa afirma em sua entrevista ao Zane Lowe que descobriu que seria headliner do festival Glastonbury (um dos mais importantes do mundo) durante a gravação do projeto e que a ideia da performance ao vivo redirecionou a produção. Isso é evidente e não de um jeito bom. Pouquíssimas das faixas conseguem se sustentar no estúdio.
“Training Season” foi o segundo single e com ela passei por um processo inverso ao de “Houdini”. Gostei quando saiu e hoje já vejo algumas faltas, a primeira sendo a de coerência. Dessa vez, encontramos Lipa dando um ultimato ao seu ficante: acabou a temporada de treino, é hora de ou virar namorado ou meter o pé. Conceitualmente é a mais interessante do álbum, a metáfora do cansaço de “treinar” alguém para amá-la funciona muito bem, porém a desarticulação da produção e de certos versos acaba causando estranhamento. Assim como a esquisita ponte, o vídeo também causa certo desapontamento. Em seguida temos “These Walls”, discutida por Lipa e Lowe na entrevista mencionada acima como se fosse uma balada poderosíssima. Não é o caso. Com um instrumental comédia-romântica dos anos 2000 ao fundo, a cantora lamenta o fim iminente de um relacionamento e a negação que acompanha o processo de caimento da ficha (“se as paredes falassem/ elas diriam ‘chega’/ elas diriam ‘desista’”). Acho a metáfora batida, especialmente porque já foi executada de modo mais eficiente diversas vezes. Infelizmente “These Walls” é uma das mais fracas do álbum e não acrescenta nada ao universo musical das paredes falantes.
“Whatcha Doing” tem um tenebroso título, mas é divertidinha. Novamente Dua Lipa está numa situação de ficância. Ela tenta conciliar sua necessidade de controle e o sentimento de (outra vez) estar apaixonada, mas não chega a nenhuma conclusão. Porém, a composição aqui deixa a desejar (o pré-refrão é particularmente desprovido de sentido). “French Exit” remete a uma praia da Espanha com sua produção dançante que incorpora violões e flautas. Se achávamos que todas ficâncias e relacionamentos haviam mudado Dua Lipa, estávamos profundamente enganados. Ela reverte a sua mentalidade de “Houdini” e volta a considerar sumir, a saidinha à francesa por assim se dizer (“não é um coração partido/se eu não o partir/o adeus não dói/se eu não o disser”). É uma faixa surpreendentemente elegante, apesar dos versos aleatórios falados em francês.
“Illusion”, terceiro single do álbum, é fraca, mas, após tantos bocejos musicais, revitaliza os ouvidos. Ao invés de se apaixonar por um ficante, ela afirma com confiança que jamais vai se apaixonar pela ilusão que estão lhe vendendo pelas pistas de dança ao redor do mundo. Gosto da produção, mas dentre todas elas acho que é a mais comum. Creio que a adição de uma London Session facilmente ajudaria na memorabilidade da faixa. “Falling Forever” tem os vocais mais marcantes da carreira de Lipa, mas simplesmente não combina com o Radical Optimism. É muito gritada, a bateria é muito alta, e a produção é muito Dua Lipa (2017) de modo geral. Não é uma música ruim, apenas deslocada, mesmo que reitere o otimismo romântico da obra.
“Anything for Love” é uma das melhores do álbum, porém é a mais curta. A produção é deliciosa. Ao som de um piano que eventualmente progride para uma leve bateria, Lipa lamenta a morte do romance, perguntando ao ouvinte “lembra de quando costumávamos fazer tudo por amor?”. Desde o incidente das letras vazadas, suspeitava que essa seria uma das minhas favoritas e não deu outra (manifestação?). É também uma das mais bem escritas do álbum, mesmo que esse feito não seja particularmente difícil, e atribuo esse melhoramento à presença de Julia Michaels na composição.
“Maria” é mais controversa. A maioria das resenhas de Radical Optimism elogiam a faixa e concordo parcialmente com as observações feitas. Sim, é o momento mais vulnerável de Dua Lipa no álbum, mas a produção ligeiramente espanhola dançante que faz de “French Exit” um bom momento auricular aqui não funciona. “Maria” é uma carta de gratidão à ex-namorada do namorado atual de Lipa (“agora ele é tudo o que eu sempre quis/ quero te agradecer por tudo o que você fez”), mas seu propósito é tão descaradamente martelar na cabeça do ouvinte que existe otimismo em términos que a gratidão perde um pouco a sensibilidade e se torna cômica. Rimar “Maria” com “feel ya” não ajuda na comicidade e, por algum motivo, fiquei aguardando Dua Lipa agradecer sua antecessora latina (ou italiana) por ensinar o namorado a tomar banho direito.
“Happy For You” funciona muito bem como última faixa, mas sua versão de estúdio parece desnecessariamente longa (algo que não acontece com a versão ao vivo, performada por Lipa no Saturday Night Live ontem). Mais uma vez martelando na tecla otimista, a cantora ressalta sua felicidade pelo novo relacionamento de seu ex, que agora namora uma modelo. Assim como “Falling Forever”, é grandiosa na produção e nos vocais, sofrendo também de um grande caso de incoerência. O fato de a canção acabar com o som de passarinhos não ajuda. Apesar dos pesares, encerrar um álbum com os versos “eu devo ter te amado mais do que imaginei/ estou feliz por você” é um ato poderoso em sua magnanimidade.
De modo geral, Radical Optimism não oferece nada radical, mas otimismo infelizmente não falta. Tenho inúmeras reclamações a fazer sobre essa nova onda de estrelas do pop intimamente ligadas à crescente cultura hollywoodiana do bem-estar (texto futuro?), mas talvez a maior de todas seja: tudo isso é perfumado de uma ingenuidade e profundidade infantil. Nós não somos convidados a investigar como Dua Lipa se tornou uma pessoa positiva e desprovida de rancor e, se formos interpretar o álbum como uma polaroid da vida dela nos últimos anos, nos deparamos com o fato incontornável de que tudo parece… desinteressante. Uma vida sem conflitos, permeada por ficâncias, amores de verão, baladas e altíssima autoestima. Uma vida que a primeiro momento parece invejável, mas que, ao ter seus detalhes revelados, se prova vazia, robótica em seu otimismo ao ponto de soar desconectada de sua humanidade. É verdade que o Future Nostalgia foi uma excelente obra de pop desamarrada de sentimentos humanos, mas acho que esse tipo de música não vai mais funcionar para Lipa, que desde 2020 teve uma ascensão astronômica. Talvez ela não seja uma pessoa particularmente introspectiva ou choramingante, mas iremos precisar de provas futuras de que ela é, de fato, uma pessoa. É hora de parar de falar de ficantes e de começar a falar de si mesma. É hora de responder a pergunta “mas qual é a personalidade da Dua Lipa?”.
Mas, se você gosta de ruivas de farmácia, de términos por sumiço, de dançar que nem o gif da Scarlett Johansson, de radicalizar o otimismo, de praias espanholas, de falar que é romântico ao invés de mostrar que é romântico, de fuxicar a vida do seu ex-namorado e da ex-namorada do seu atual e de mentir, recomendo muito.
5.5/10