corte de espinhos e rosas: gata, o seu marido é feminista?
Em 2015, Sarah J. Maas lançou A Court of Thorns and Roses (Corte de Espinhos e Rosas em português, ACOTAR para os mais íntimos), volume um de uma trilogia de mesmo nome. O romance acompanha Feyre Archeron que, após cometer homicídio culposo na divisa entre as terras mortais e as terras das fadas, é sentenciada a passar o resto dos seus dias na mansão do lorde responsável pelo finado. O lorde é Tamlin, governante da Corte Primaveril, um desajeitado e agressivo feérico tão poderoso que muitas vezes assume forma animalesca. Sim, a história é uma releitura de A Bela e A Fera. Mas não uma típica releitura, e sim um Young Adult de fantasia misturado com romance erótico (é, meio furry). Por questões comerciais, YA não tem conteúdo sexual explícito, mas Sarah J. Maas quis inovar e seu descaramento acabou dando certo.
O livro rapidamente se tornou um best-seller, porque além do sexy pioneirismo da narrativa, o timing foi perfeito. 2015 foi o ano das releituras, com o lançamento dos famosos A Fúria e a Aurora e Sem Coração, por exemplo. ACOTAR logo adquiriu uma fanbase sólida e Maas se consolidou como uma das titãs da fantasia YA. Os dois outros livros da trilogia foram lançados em 2016 e 2017, ambos best-sellers e ganhadores do Prêmio Goodreads Choice na categoria fantasia. Desde então, o universo da série apenas cresceu, com spin-offs, continuações que precedem as reais continuações, e mais recentemente a criação de uma espécie de multiverso.
Ao contrário de muitos de seus colegas de gênero, Maas se manteve relevante mesmo depois de seu pico de popularidade. Isso se deve não só à produção incessante de livros, mas também aos seus diversos tipos de culpa no cartório. As críticas à ACOTAR, por exemplo, são muitas: falta de agência da personagem principal, péssima representação LGBT+, linguagem levemente sexista, buracos no enredo, enredo que em si faz pouco sentido repetidas vezes, e a categorização da série como YA mesmo tendo conteúdo que não é destinado à esse público. Além disso, os seus livros também protagonizaram o infame fiasco dos sabonetes fálicos em 2018. Seja por bem ou por mal, Maas conseguiu se tornar inescapável.
Eu li ACOTAR pela primeira vez no ano de lançamento, no início da minha adolescência, e lembro vividamente de considerar o livro uma obra de altíssima qualidade. Isso não foi um mérito do livro em si, mas sim da impressionabilidade e falta de conhecimento típicos daquela idade. Quando Cari, do canal Cari Reads, postou um vídeo sumarizando os acontecimentos do primeiro livro, resolvi interpretar como um sinal divino e reler tudo. Afinal, quão ruim de fato poderia ser?
Posso garantir que foi uma experiência, sem dúvidas.
Para propósitos práticos, irei resenhar a trilogia (Corte de Espinhos e Rosas, Corte de Névoa e Fúria e Corte de Asas e Ruínas) sem spoilers. Avaliar cada livro individualmente e detalhadamente seria quase como escrever uma monografia, então é melhor não, para o bem de todos. Além disso, em busca de preservar a sanidade que me resta, decidi não ler os spin-offs e continuações.
DE MODO GERAL…
Releituras são simultaneamente fáceis e difíceis de serem escritas. Ao mesmo tempo em que o autor já tem um molde e um enredo base para seguir, a falta de novidades pode causar certo tédio e o excesso de novidades pode tornar o material original irreconhecível. Sarah J. Maas surpreendentemente encontra esse equilíbrio em Corte de Espinhos e Rosas. O livro é similar o suficiente à A Bela e A Fera ao ponto de o leitor conseguir traçar mentalmente tudo o que com certeza vai acontecer (mocinha/pai da mocinha desrespeita alguma regra, ela deve ir morar com uma fera, romance, dinheiro, maldições, bruxas). Porém, a adição de elementos como fadas, poderes mágicos, festivais mágicos (de fadas) e politicagem faz com que a história se torne um mistério a ser resolvido.
Feyre como personagem principal é bem medíocre. Maas insiste na ferocidade e habilidade da heroína, porém só vemos de fato inteligência e agilidade no final do livro, sob circunstâncias extremas. O pai e as duas irmãs dela, Nesta e Elain, são entediantes. A Corte Primaveril de Tamlin, onde grande parte do livro se passa, é bem descrita e não posso negar que o lago estrelado parece fascinante. Tamlin, em si, é mais do mesmo: um homem bruto com um lado melancólico que se deleita com a felicidade de sua amada e faria de tudo para protegê-la. Exceto… será que faria mesmo?
Apesar de a química entre os dois não ser nada de especial, passamos a maior parte do livro assistindo-os se apaixonarem através de brigas e raras risadas. Eventualmente o clima se acalma, dando lugar a alguns momentos de rasa profundidade emocional. O primeiro livro já deixa clara a preferência de Maas por cenas eróticas logo após grandes tragédias, como uma maneira de arejar o ambiente, por assim se dizer. Sobre as cenas eróticas: curtas, discretas, direto ao ponto e irrelevantes.
O segundo livro (ACOMAF) abandona as pretensões de ser uma releitura (a não ser que você semicerre os olhos e procure por Hades e Perséfone em sombras na caverna). Acompanhamos os personagens se recuperando do final traumático de ACOTAR, e a narração se arrasta um pouco no início. É aqui que entram as críticas sobre o tratamento do trauma e também sobre o modo como o arco de um dos personagens foi lidado. Apesar de o que acontece fazer sentido de certos ângulos, fica evidente que Maas está sendo impiedosa por simples preferências pessoais a fim de beneficiar seu personagem favorito. Há uma troca no interesse amoroso de Feyre e somos novamente forçados a assisti-la se apaixonar, dessa vez de uma maneira comedida e cínica. Nesse ínterim, o leitor é informado da possibilidade de uma guerra sem sentido.
ACOMAF é o volume da trilogia que mais escancara as fraquezas de Maas como escritora e suas tendências maximalistas. É um livro gigantesco, mal compassado, repetitivo, e pseudo-feminista. Feyre como protagonista deixa muito a desejar, assim como o enredo. Muitos segredos são revelados e nova mitologia feérica é introduzida, o que começa a tornar o mundo “simples” de ACOTAR confuso e carregado. Personagens demais permeiam as páginas e é esperado que nos importemos com suas existências.
Para os interessados no elemento mais sensual, já aviso que o erótico, de modo geral, se torna camp.
Teve uma cena de ACOMAF que viralizou no TikTok, e nos vídeos garotas colocavam seus namorados para lerem-na e todos ficavam visivelmente chocados com o conteúdo. Evidência da cultura puritana desse país. Porém, vale mencionar que essa é talvez a melhor cena erótica da trilogia, apesar de não fazer muito sentido, naquele momento da narrativa, com a caracterização dos personagens envolvidos. Mas, não se enganem, não é a melhor por ser boa, e sim porque as outras são todas invariavelmente esquecíveis.
Quanto aos personagens, me senti grata pelas aparições escassas da família de Feyre. A Corte Noturna é divertida, não tenho críticas porque gosto da trope de found family. Outra faceta de Maas que é escancarada é sua preferência por escrever homens. Cassian e Azriel são intrigantes em seu contraste, porém Morrigan e Amren são blasé. Ianthe é desprezivelmente cansativa em suas arquitetações vilanescas. Temos também Lucien, que é importante no livro anterior, mas estou mencionando agora, e sua personalidade simplesmente deixa de fazer sentido.
Agora, ele: Rhysand.
O que dizer de Rhysand? Um ícone feminista, percussor de todos os movimentos em favor de minorias, esquerdista, ator, mártir, bonito e rico. A razão de ele ser a melhor parte de ACOMAF é porque Maas o ama. O cuidado e o carinho são muito óbvios nas páginas, ao ponto de ele sofrer de um caso grave de perfeição literária. Rhysand não tem defeitos, e, quando faz coisas questionáveis, todos o perdoam quase instantaneamente. Ele é divertido de ler e, durante as páginas exaustivas, sua aparição era como um raio de sol. Não sei quanto disso se deve ao fato de ele ser um bom personagem (lembrem-se, zero defeitos significam personagens sem dimensões).
Mas, de modo geral, também tenho um fraco por mártires. E Rhys? Ele morreria pelos meus pecados.
Corte de Asas e Ruína (ACOWAR) recupera o ritmo e conseguiu me manter completamente entretida. A escrita é melhor, os personagens já estão mais desenvolvidos e Feyre finalmente se estabelece como uma verdadeira protagonista. Eu quase emiti um grito ao vê-la tomar uma decisão e agir. O aspecto romântico é divertido e gostei bastante da comunicação entre o casal, algo incomum em romances. Eles se apoiam e o amor os torna uma unidade imbatível — é uma dinâmica muito satisfatória. Outra dinâmica muito satisfatória que aparece ocorre entre dois personagens que se espelham, se odeiam e querem se beijar, uma combinação que sempre agrega muita química e sabor à qualquer obra.
Terminei o livro faz três dias e não consigo lembrar de nenhuma das cenas eróticas para avaliá-las, então creio que essa afirmação seja avaliação o suficiente.
Porém, a fraqueza mais gritante de ACOWAR é a construção do mundo. Até então, Maas utilizou distrações (maldições, trauma, homens bonitos, homens chatos) para encobrir o fato de que bem… nada faz sentido de verdade. Primeiro, a batalha ancestral que aparece desde ACOTAR é estranhamente similar à Guerra Civil dos EUA. Segundo, a história feérica é tão longa, engloba tantos personagens, tantos artefatos, que tudo se torna perdido. A melhor solução é ignorar que existem tensões nesse lugar fantasioso, certo? Certo. O único problema é que o conflito principal do livro é uma guerra (ACOWAR, duh). Que, como mencionado anteriormente, também não faz sentido. As explicações para as batalhas de proporções gigantescas seguem a mesma linha das razões para o Brexit.
Sarah J. Maas no ENEM? Brincadeira. Brexit já é assunto batido.
Considerando a quantidade de personagens, criaturas, localizações, estratégias e tragédias que acontecem em nome dessa guerra espera-se que as razões sejam mais… robustas. Porém, tudo indica que Maas apenas queria que uma guerra acontecesse, então teve que inventar motivos de última hora. A existência de uma economia feérica que literalmente acabou de ser introduzida? Por que não?
Infelizmente, a família de Feyre aparece muito nesse livro. Também, para minha grande infelicidade, Maas decide enfiar muito desajeitadamente folclore russo na série. Um grande desserviço à Vasilisa, A Bela e Koschei, O Imortal.
De modo geral, o primeiro volume é okay, o segundo é cansativo e o terceiro consegue atingir o status de bom contra todas as probabilidades. Não posso dizer que nenhum deles é ruim, pois todos oferecem entretenimento de formas variadas (e, às vezes, questionáveis). Lembro de ter achado ACOMAF, no auge dos meus 15 anos, o melhor livro de todos os tempos e a releitura me surpreendeu pois revelou inúmeros problemas que ignorei na minha ingenuidade adolescente. Essa foi a minha única opinião que mudou totalmente, o resto permaneceu mais ou menos o mesmo. Se você tiver interesse em fritar neurônios, rir e questionar o que diabos Maas acredita ser feminismo, recomendo a leitura.
Mas é como já dizia o beatífico Rhysand: a escolha é sua.
ACOTAR: 3/5
ACOMAF: 2/5
ACOWAR: 4/5