calico: do gato pisado sai o miado
Imagine-se no interior de Minas Gerais. As serras, os campos, as vacas pastando e mugindo, os cavalos correndo, o silêncio ensurdecedor ao cair da noite. Imagine que estamos em maio, mês indeciso, que é mais ou menos frio e mais ou menos quente. O terceiro álbum de estúdio do americano Ryan Beatty acabou de sair e apareceu despretensiosamente no seu “lançamentos da semana”. Sentada na varanda do seu quarto enquanto o bezerro lá longe rumina, você clica e descobre que… bom, talvez esse seja um dos melhores álbuns do ano. Mas e aí? O que fazer ao descobrir algo tão primoroso que te impossibilita de usar um tom cáustico e te força a ser sinceramente elogiosa? Não sei. Segui o exemplo dos portugueses, que mantiveram o Brasil em segredo por anos antes de decidirem encher as caravelas de malas em 1500. Sim, estamos em outubro e eu vou falar de um álbum que ouvi em maio. O tempo é uma construção capitalista para vender relógio.
Se você gostava de cores pastéis e de ser diferente no longínquo ano de 2017, provavelmente conhece Ryan Beatty e seus falsettos. Ele costumava colaborar frequentemente com o coletivo de rap BROCKHAMPTON, aparecendo em faixas como “BLEACH” em Saturation III e na viral “SUGAR” em GINGER. Em 2018, Beatty lançou seu primeiro álbum, o Boys in Jeans, um compilado promissor de canções veranis sobre seus envolvimentos com garotos, fama, isolamento e liberdade. A produção é nostálgica e as composições ingênuas e sinceras conferem à obra uma atmosfera distintamente romântica e pueril. Dreaming of David, de 2020, mostra uma evolução clara na direção artística de Beatty. Ele se distancia um pouco do pop influenciado pelos anos 2000 e passa a experimentar com synths, autotune e composições mais simples. O resultado é um álbum refinado, maduro e imersivo. Calico (2023) é a evolução natural de seu predecessor: um álbum acústico, permeado por harmonias e percussão suave, mas que às vezes oferece momentos discretamente grandiosos com synths esparsas.
Produzido por Ethan Gruska (Punisher, SOS, The Loveliest Time) e o próprio Beatty, Calico, cujo nome faz referência à espécie de gatos de três cores e também à um tom de bege, é aberto pela singela “Ribbons”. A canção reconta um amor melancólico, marcado por uma relação instável com o álcool e pela solidão da passagem do tempo. É possível notar imediatamente a evolução na escrita de Beatty, que abandona os longos e precisos relatos para abraçar frases estruturalmente simples, mas herméticas, cujo significado só fica visível com a devida atenção. Quero ressaltar também a capacidade de Beatty de pintar um retrato realista da Califórnia através de sua paleta de sons, algo que muitos tentam, mas nem sempre conseguem (o álbum de estreia da banda LANY é um ótimo exemplo desse feito também). Os vocais suaves acompanhados pela produção delicada criam uma atmosfera vívida e sentimental, e ditam como será o resto do projeto.
“Bruises Off the Peach” é mais colorida e vibrante. Nela, Beatty reflete sobre um relacionamento com partes metaforicamente “apodrecidas” e sobre sua dependência do amor romântico. Com harmonias e ecos, a faixa oferece um dinamismo que vai além da introspecção de “Ribbons” e transmite de modo honesto um sentimento agridoce. Já a próxima, “Cinnamon Bread”, é a declaração de amor do álbum. Tendo lidado com as partes problemáticas de seu relacionamento, ele está livre para admitir abertamente o que sente e a faixa, que é cantada com um sorriso e com uma doçura sincera, reconta momentos corriqueiros que o afetaram (um jogo de basquete, uma canção tocada no piano e cantarolada em ritmo desafinado). Ao final de “Cinnamon Bread”, com um instrumental crescente no fundo composto por percussão suave e guitarras distorcidas, Beatty afirma que nem mesmo o passado meretrício de seu namorado poderia fazê-lo desistir da relação. Que tocante!
“Andromeda” retorna ao silêncio melancólico para contemplar a cidade natal de Beatty na Califórnia e a passagem do tempo dentro de seu núcleo familiar (marcada aqui pelo retorno anual de Júpiter). Na canção, ele assiste sua irmã criar seu sobrinho na casa em que mãe viveu durante a infância e alimenta gatos de rua. As harmonias aqui são inacreditáveis e a produção é genuinamente muito emocionante. “Bright Red” fala sobre se manter otimista mesmo diante da ideia de que tudo acaba. Com guitarras e sintetizadores ao fundo, ele entoa que o futuro até pode ser incerto, mas que por hoje ele tem o sol e seu namorado, além de lindas estradas californianas, e isso basta.
Logo em seguida temos “Hunter”, que tem duração de sete minutos. Percebi essa duração, aliás, hoje ao vir escrever essa resenha. A produção esparsa, hipnotizante e levemente metronômica com os sintetizadores me lembrou das faixas de Dreaming of David, já que somada às harmonias cria uma atmosfera meio gospel e inteiramente espiritual. Nela, Beatty se isola do mundo na natureza de sua terra natal para refletir sobre Questões da Vida. A letra é a mais fraca do álbum, mas isso não quer dizer muito, considerando que todo o resto é impecável. “White Teeth” é a minha favorita e talvez uma das melhores canções que já escutei na vida. Não consigo elogiar a produção o suficiente. É muito, muito bonita. A voz de Beatty soa macia, e, sobre violões inacreditavelmente suaves, discorre sobre segredos, envelhecimento e um relacionamento que não deu certo. Na ponte, temos harmônica, banjo, órgão, sintetizadores e baixo. O baixo é tocado por ninguém mais ninguém menos que Justin Vernon, conhecido pelas bocas pequenas como Bon Iver. Vale mencionar também que Vernon é engenheiro adicional de quase todas as faixas de Calico. Ouvir “White Teeth” no silêncio ensurdecedor das serras mineiras foi uma experiência transcendental. Toda vez que saía do banho e a colocava para tocar, com as portas da varanda abertas e o sol se pondo em tons de cor de rosa, sentia a mão divina acariciando meus cabelos. Se existem músicas que desalinham meus chacras com suas produções (como, por exemplo, “It’s Nice to Have a Friend” de Taylor Swift), essa tem o efeito oposto. Basta escutá-la para que meu espírito se realinhe.
“Multiple Endings” é a música mais claramente de término do álbum. É uma balada pianística com sintetizadores na qual Beatty afirma se sentir usado pelo ex-namorado e se questiona se toda a conexão que tiveram existia apenas em seus sonhos. A produção é bem interessante aqui também, tendo um tom mais baixo e uma espécie de zunido com saxofone que a entrecorta. Por fim, “Little Faith”, que explora a relação de Beatty com sua mãe e o cristianismo. No refrão, ele entoa que deve acreditar mais em si mesmo e no mundo ao seu redor, como sua mãe faz. Essa canção tem ukulele (tocado por Justin Vernon) e órgão, e de alguma maneira dá muito certo. As harmonias, o mellotron… Outra experiência espiritual. Em uma viagem que fiz em agosto, ouvi essa no repeat por uns trinta minutos enquanto o avião pousava e tive que engolir o choro. É um encerramento inacreditável para um álbum inacreditável.
Sei que faço parte do grupo de mais ou menos três pessoas que escutam Ryan Beatty no Brasil, mas venho por meio deste pedir para que você se junte a mim. A progressão artística dele foi surpreendente e Calico é tão complexo, simples, honesto e tocante que passei cinco meses debatendo se valia a pena vir aqui resenhar, porque o melhor jeito de compreender é… ouvindo. Creio que nada do que eu fale aqui fará justiça ao material em si.
De modo geral, se você gosta de minimalismo, de falsettos, da comunidade LGBT, de loiros bigodudos, da Califórnia, de sintetizadores, de choros, de gatos, de céus azuis e de botas de cowboy, recomendo muito.
10/10