bones and all: o amor é difícil de digerir
É difícil falar de Bones and All (Até Os Ossos em português), é difícil articular a experiência emocional de assistir as extensas paisagens do centro-oeste americano sendo entrecortadas por cenas tão intimistas que tiram o fôlego. Ainda mais difícil é definir o que Luca Guadagnino queria dizer exatamente, já que as possibilidades alegóricas parecem infinitas. A verdade é que, ao contrário dos comentários iniciais sobre o filme, Bones and All não se assemelha em nada com o grotesco de Suspiria (2018), mas sim com a quietude romântica de Call Me By Your Name (2017). Em uma entrevista recente, Timothée Chalamet, amigo meu desde a era vitoriana e com quem colhi maçãs em diversos pomares franceses, disse que o filme é sobre um tipo de amor baseado em devoção e proteção, um amor sem grandes explosões, entediante, entre duas pessoas existencialmente marginalizadas. Então, você vira para mim e me pergunta: “esse não é aquele filme sobre canibalismo?”, “esse não é aquele filme de terror?”. A resposta é sim para ambas. Mas… mais ou menos.
Bones and All conta a história de Maren (Taylor Russell), uma garota normal, não fosse por sua fome por carne humana. Enterrando suas predileções no fundo da gaveta, ela tenta se adaptar na escola e na vizinhança, até que, numa festa do pijama, as coisas dão terrivelmente errado. Seu pai, que tem viajado pelos Estados Unidos junto a ela, fugindo simultaneamente do que ela é e do passado, a abandona, deixando-lhe uma fita cassete, uma certidão de nascimento e um maço de dinheiro. Começa aí sua jornada até sua mãe, a única pessoa capaz de explicar o motivo dessa fome, de onde esse desejo vem. No caminho, ela encontra Lee (Timothée Chalamet), um canibal com aparentemente poucas preocupações éticas, mas com muito carisma.
O filme é longo e esparso. Em sua odisseia, Maren passa por cidadezinhas esquecidas, tomadas por decadência moral, poeira e destruição. Através de enquadramentos amplos, Guadagnino captura o que deveria causar repulsa com surpreendente cuidado e ternura. As estradas escuras, as nuvens coloridas sempre em movimento, as casas com bancadas em tons pálidos, as cercas lascadas e a grama alta se tornam cenários acolhedores, vívidos, o ar denso do verão palpável, imortalizado dentro de cada instante. A paisagem do centro-oeste é intercalada por montagens de Maren e Lee, rindo e cantando dentro de uma caminhonete azul, nadando em rios turvos, dormindo sob as estrelas, e, eventualmente, se alimentando.
O canibalismo em Bones and All não é retratado como algo grotesco, o que é interessante. Transgressivo, moralmente duvidoso, devastador, mas certamente não grotesco. Há uma comunidade deles, os Eaters, e eles são capazes de se reconhecer pelo cheiro. Todos são pessoas existencialmente marginalizadas, como Chalamet descreveu, ou, para usar um termo mais preciso, minorias que também são assombradas pela pobreza. Talvez o filme seja uma alegoria para o vício, talvez seja uma alegoria para o isolamento LGBT, talvez seja uma alegoria para os ciclos de abuso familiar, talvez, talvez, talvez. O ponto é que o tema principal do filme é a intimidade e o amor, como relações são construídas nas beiradas da sociedade, quais são os parâmetros, os princípios.
Dentro do contexto narrativo, se alimentar com outra pessoa é a base para a criação de um laço afetivo, e assistir o consumo também. Lee e Maren se alimentam juntos, assim como uma dupla que aparece na metade do filme. Esse é um tipo de intimidade que requer entendimento profundo, por isso, de certa maneira, todos os personagens se espelham em suas ânsias e angústias, em sua solidão. E, por isso também, palavras como “bom” e “mau” se tornam vazias. Isso aparece perfeitamente exemplificado no trailer, onde Lee pergunta a Maren “do you think I’m a bad person?”, para o que ela responde “all I think is that I love you”.
Inclusive, as performances de Chalamet e Russell são sensacionais, sutis em sua potência. A criação de um drama doméstico, romântico, de aventura, que mistura terror e coming-of-age é meio inconcebível, mas os dois fazem a história funcionar de uma maneira dilacerante. Na verdade, o elenco inteiro é memorável. Mark Rylance como Sully irá me causar calafrios por um bom tempo, e Chloë Sevigny como Janelle também.
De modo geral, ainda me encontro sem palavras para descrever Bones and All, o que em si é um feito, porque eu raramente calo a boca. A obra é, para mim, a segunda mais romântica do mundo, logo após Phantom Thread (2017), algo que talvez eu deva discutir com a minha terapeuta. Mas. É verdade. Como tudo hoje deve ser facilmente digerível, explicável e resumível, é raro ver arte que se nega, que bate os pés, e insiste no difícil. É raro ver arte que insiste dessa maneira no amor, na incondicionalidade, na possibilidade de libertação da vergonha. O final é indescritível, devo ter passado uns vinte minutos chorando depois de terminar. Até hoje, se pensar muito, choro. Enfim.
Se você gosta de bissexuais, mullets, pausas para um lanchinho no meio de viagens, pisar no mato e assassinato, recomendo muito.
10/10