addison: quem?
Em 2021, a influencer e visionária Addison Rae lançou o seu incompreendido single “Obsessed”. Em uma roupa preta reflexiva, a loira se apresenta no palco do programa do Jimmy Fallon, contorcendo-se em inusitadas formas e dublando a faixa com mínimos movimentos labiais. Aqui tanto palco e programa estão no sentido figurado, já que o clima pandêmico impedia a coexistência de ambos. Tratava-se, na verdade, de um galpão com uma estrutura vermelha no meio. Mas isso são detalhes. O que importa é que, em 2021, ninguém entendia o gênio da dançarina, compositora e atriz. Ninguém apreciou a piada sobre ar rarefeito dos versos “saltos tão altos que talvez meu nariz sangre”. Mas eu, que cursei o fundamental justamente para no futuro poder usar Ciências na interpretação de músicas pop, apreciei. Foi ali que eu compreendi que estávamos diante de uma nova e intrigante voz. Sofri julgamentos de colegas, fui rechaçada. Musiquinha de tiktoker? É, musiquinha de tiktoker. Quem está rindo agora?
Para chegar de fato a minha resenha do primeiro álbum de estúdio de Rae, sinto que preciso oferecer um panorama histórico-familiar dessa figura tão peculiar, pois toda informação é pouco se tratando da Vanessa Lopes americana. Primeiro, Addison Rae é de Lafayette, Louisiana, no sul dos Estados Unidos. Sim, ela falava arrastado. Sim, ela largou o sotaque para se cosmopolitizar pois, como ela explica em um perfil à Rolling Stone, “a Marylin Monroe nunca falou ‘ocês’”. Segundo, seus pais se casaram e se divorciaram duas vezes. Com a ascensão de Rae ao estrelato virtual, os dois resolvem embarcar nessa jornada junto com ela, ambos providos de segundas e terceiras intenções. O pai de Addison, Monty Lopez, vira influencer e criador de conteúdo adulto no OnlyFans. A mãe de Addison, Sheri Easterling, segue uma rota menos brega e se infiltra no mundo Mães do TikTok, acumulando mais de treze milhões de seguidores. Em 2022, ambos se envolveram em escândalos sexuais, o que resultou num último divórcio e no início da carreira musical de Monty Lopez. Agora, repare no sobrenome mexicano. A primeira coisa que me passou pela cabeça fazendo essa aprofundada pesquisa sobre um tópico que ninguém se interessa foi “Addison Rae latina?” e a segunda “Addison Rae tão latina quanto Camila Cabello?”. Veja bem, leitor, Rae não é o sobrenome da nossa artista, é o nome do meio. Imagina só, Addison Rae Lopez. Mas, não calma. Como ela não fala com nenhum dos pais, mas sua relação com o pai é pior, optou por utilizar o sobrenome da mãe. Easterling. Addison Rae Easterling. Meu Deus, Addison quase vira nossa prima por meio das veias abertas da América Latina!

Ler o perfil da Rolling Stone mencionado acima e, posteriormente, conduzir essa pequena investigação da vida de Rae foi uma experiência marcada por inúmeros momentos de profunda e completa confusão. A cada linha era uma nova exclamação de incredulidade. Porém, saber dessa combinação de fatores extremamente aleatórios torna o seu primeiro álbum, Addison, mais rico. É uma nova camada interpretativa para uma obra que, segundo sua criadora, almeja estabelecer um vínculo com o ouvinte. Rae diz na entrevista de lançamento do projeto para a Apple Music que tudo começa pelo nome escolhido, “é pessoal, é íntimo”. Para os mais desatentos, talvez pareça forçação de barra, mas é verdade. Addison é, em seu cerne, um álbum pessoal e íntimo. Ele apresenta ao mundo o universo da loira tiktoker afilhada da Charli xcx sem muitas delongas e com personalidade de sobra.
Na primeira faixa, “New York”, encontramos nossa menina interiorana na cidade apelidada de fruta. Por cima de uma batida pop eletrônica, Addison repete desesperadamente que ama Nova York porque lá se sente livre e que liberdade é sua religião. Os temas do álbum já são apresentados: dinheiro/luxo (os carros pretos e o Bowery Hotel), falta de controle sobre a passagem do tempo e amadurecimento (ir embora de casa, a cidade de Los Angeles). É uma das minhas menos escutadas do álbum, acho muito fraquinha, porém não consigo imaginar uma abertura melhor, se é que faz sentido. É caótica, mas boa o suficiente para deixar os ouvidos curiosos. A próxima é o single “Diet Pepsi”, que ultimamente tem sido tratado como a Mona Lisa musical. Em entrevista ao podcast do New York Times, Addison deseja boa sorte aos aventureiros que tentarem recriar a música. Mas… quem exatamente está tentando recriar “Diet Pepsi”? Ela insiste na ideia por alguns minutos, depois vai além e chega a dizer que a escolha de lançar um clipe em preto e branco tinha o objetivo de deixar a faixa “ainda mais difícil de digerir”. Oi? Calma lá. Numa releitura das antigas de Lana Del Rey, Addison sussurra agudo sobre atividades censuradas no banco de trás de um carro. É a Mona Lisa? Não digo. Mas é uma excelente música pop de qualquer maneira, irreverente e sensual.
“Money is Everything” é uma das minhas favoritas. Novamente sussurrando, Addison revela ao ouvinte que dinheiro não vai junto no caixão e que agora é rica. Então, numa explosão eufórica, ela avisa que dinheiro compra felicidade utilizando uma metáfora lúdica— “pocket full of sunshine, bursting through the seams”. É uma música que exala despreocupação, risadas, vento no cabelo e céu azul. O coro distorcido entoa que “dinheiro é tudo” e a voz de Addison ecoa como numa montanha russa, “eu sou a garota mais rica do mundo”. Todo o conceito é idiota e meio escrachado, mas funciona tão bem que chega a ser irritante.

A próxima, “Aquamarine”, é inacreditável — sua existência no catálogo de uma tiktoker, sua existência ponto. Em suas entrevistas, Addison gosta de destacar que o que a diferencia de suas coleguinhas de mercado é seu bom gosto. “Aquamarine” foi a primeira prova concreta disso (e felizmente não a última). Lançada como o segundo single do álbum, a faixa faz referência ao filme adolescente de mesmo nome (um dos meus preferidos da época, vale ressaltar) e também ao seriado adolescente H2O Meninas Sereias (um dos meus preferidos da época, vale ressaltar). Então sou menos imparcial ainda quando se trata de “Aquamarine”, mas me parece factual que é uma obra-prima. A produção aqui é extraordinária: dançante, hipnótica, chique. Finalmente falando que nem gente e abandonando os sussurros, Addison convida o ouvinte a mergulhar, prometendo novas alturas (profundidades?) e libertação. Mantendo a metáfora da sereia, ela afirma que não irá mais se esconder e que o mundo é a sua ostra. O clipe, gravado em filme, também é sensacional, nos mostrando a artista num baile de máscaras, depois numa banheira e, por fim, nas ruas noturnas. Ela veste trajes brilhantes, que cintilam como escamas, ou um conjunto na cor da sua pele combinado com um par de Louboutins. É glamuroso, rico em texturas e símbolos que evocam requinte. Como eu disse, prova concreta de bom gosto.
“Lost & Found” certamente existe e eu com certeza ouvi. Addison fala sobre se encontrar, sussurra assombrosamente “droga” e some. Quando chegamos no chiquérrimo terceiro single “High Fashion”, temos um vislumbre do que poderia ser uma Mona Lisa musical. Aproveito para destacar aqui nominalmente as produtoras do álbum, Luka Kloser e ELVIRA, únicas colaboradoras de Addison no projeto. Para a Apple Music, a tiktoker interiorana revela que foi a junção de sua ignorância sobre teoria musical e a flexibilidade da dupla que transformou a faixa no que é hoje: musicalmente quase certa, mas com um baixo deslocado que dá um tempero extra. O clipe é um meio termo entre “Diet Pepsi” e “Aquamarine”, transitando entre imagens de glamour e momentos desconcertantes tipicamente addison-raeanos (uma roupinha sexy de Dorothy, lambidas aleatórias, Los Angeles pegando fogo). Na primeira vez em que ouvi “High Fashion”, achei desnecessariamente longa, mas acabei me acostumando. Addison afirma, na mesma entrevista para a Apple, que a ponte foi uma adição posterior. Sinceramente? Acho que poderia ter continuado sem. Além de não acrescentar nada ao aspecto lírico, tira a fluidez do instrumental e só enrola o ouvinte.
“Summer Forever” é… curiosa. Sem dúvida alguma a que menos gostei do projeto inteiro. Primeiro, o susto ao achar que Rae, notoriamente fã de pés no sentido bíblico, estava enfiando isso numa música. Nada contra, apenas me pegou desprevenida. Mas não, é só que ela pronuncia “fears” com uma dicção pavorosa. Esse é outro momento em que acho que a influência de Lana Del Rey fica gritante. É uma música sensual de verão, carregada de banalidades românticas e amaldiçoada pela rima taylor-swiftiana “car/bar”. Os versos da ponte são criminosamente constrangedores, o que deixa o comprimento absurdo da faixa (3:47min) ainda mais sofrível. Dito isso, “Summer Forever” é ruim? Não, apenas não chega a ser boa de fato.
Acho “In the Rain” a canção mais densa do álbum, o que é um feito bem fácil, mas não deixa de ser interessante de se notar. Addison fala sobre seu amadurecimento enquanto pessoa e artista, afirmando ser incompreendida, porém ressaltando que apenas chora na chuva. Dessa forma, sua tristeza é imperceptível, sem consequências, e a performance pode continuar. E, ao falarmos de Addison Rae, precisamos falar de performance. Desde o fatídico dia em que Rae apareceu em Los Angeles segurando um livro da Britney Spears, a internet a chama de performática. E é verdade, mas não do jeito que você pensa. No perfil para a Rolling Stone, Charli xcx é convidada para fazer um elogio à afilhada e prontamente afirma que “tudo o que ela faz é relacionado à sua arte [...], é tudo parte da construção de um mundo”. Addison discorre entusiasmadamente sobre sapatos Louboutins, lingeries coloridas e fones de ouvido com fio, todos itens simbólicos de seu debut. É proposital, claro. Ela está construindo uma marca, uma identidade visual, uma assinatura. Quando perguntada sobre utilizar o TikTok no início da carreira, ela afirma sem enrolação que queria apenas performar. É fascinante ver Addison em entrevistas mais sérias, porque ela se mostra uma pessoa assustadoramente inteligente. Fica evidente que todas as supostas presepadas de moda, discurso ou o que quer que seja fazem parte de uma narrativa. Aliás, assistir seu vídeo de favoritos foi uma experiência peculiar no sentido em que dá para ver o que é inventado, as frases que são inseridas para efeito, o que ecoa os sentimentos do álbum. Fica evidente também que há uma dimensão da vida de Rae que sempre permanecerá inacessível ao público, como é o caso do seu namoro e de outras relações interpessoais. Então, acho meio genial a ideia de performar celebridade, o mistério de nunca sabermos quem de fato é essa garota sulista de salto alto e sutiã amarelo. Questões de autenticidade aqui são insignificantes: Addison enquanto estrela do pop é a obra de arte que Addison Rae está criando. Essa é a performance.
Se “In the Rain” introduz delicadamente essa ideia de performance de celebridade ao álbum, “Fame is a Gun” a escancara. No quinto single, Rae pede ao ouvinte que não faça perguntas demais, afirmando sempre ter desejado fama, uma vida glamurosa e o amor das massas. Melodicamente, a faixa me parece uma versão mais eletrônica de algo saído de The Family Jewels, da Marina (and the Diamonds). Visto que nem mesmo a artista responsável por conceber The Family Jewels consegue lançar faixas do mesmo calibre, acho o faixa mais do que impressionante. No clipe, o nome Addison é utilizado pela primeira vez, tomando o lugar do composto Addison Rae. Cercada de zumbis, nossa tiktoker dança num palco de teatro trajando látex cor-de-rosa pastel e uma peruca num tom de loiro claro amarelado. Addison, cujo cabelo era mais escuro até “Aquamarine”, descoloriu o cabelo para os lançamentos seguintes. Em “Times Like These”, o último single do projeto, ela retoma a questão da cor capilar, ponderando tornar-se efetivamente loira. Essa também é uma das minhas preferidas. Numa comparação talvez descabida, vejo um pouco de Sex and the City na composição visual do clipe. Com um instrumental sexy ao fundo, Addison questiona sua vida inteira, iniciando por um romance e terminando em sua carreira. Gosto bastante da ideia de “tempos como esses”, pois existe uma correlação entre a data de validade de seu romance e também de sua fama, uma resignação ao fato de que tudo é descartável quando conteúdo é amplamente acessível e pessoas vivem dentro de celulares — temas que aparecem diversas vezes nas entrevistas de Addison sobre o álbum.
Após um interlúdio levemente orquestral (“Life’s No Fun Through Clear Waters”), chegamos ao quarto single e última música do projeto, “Headphones On”. Excelente faixa. Produção lúdica, suave, que combina com as letras meio nada a ver que Addison sussurra determinadamente. Escapismo e amor pela música são os temas mais importantes aqui, e funcionam muito bem quando conectados à ideia de uma persona estrela do pop. A blusa azul royal de Rae no vídeo, com os dizeres “agora abandonei minha procura pela verdade e estou em busca de uma boa fantasia”, traz à tona o elemento performático, mas também enfatiza a procura por uma alternativa à vida cotidiana. O vídeo é ótimo e mostra essa fuga da realidade de um jeito didático.
De modo geral, Addison me lembra um pouco a ambição infantil de inventar uma coreografia e dançá-la numa festa de aniversário. Há inocência e obstinação, um brilho no olhar extremamente anos 2000. É nostálgico não no sentido de que eu ouviria canções similares no rádio naquela época, mas no sentido de que resgata essas memórias específicas de ser uma garota trajando lantejoulas e montando sequências de passos ao som de Britney Spears. É esse desejo de ser vista e aplaudida, além de tudo, que parece estar bem capturado no álbum. Gostaria que Addison conseguisse fazer algo com a voz além de sussurrar? Sim, com certeza. Esse é um problema que fica gritante (com o perdão da palavra) conforme o projeto progride, o tom sonolento dando uma certa uniformidade ao que poderiam ser faixas completamente diferentes. Já basta a Billie Eilish brincando de telefone sem fio. Porém, ao mesmo tempo, tenho plena convicção de que teremos Vocais no próximo álbum, então não vou reclamar muito.
Se você gosta de sapatos, de pés, de gastar dinheiro, de refrigerantes sem açúcar, de risadas falsas, de mentir por esporte, do Chico Bento, de sereias com mechas no cabelo, de dancinhas de TikTok que podem ou não ter sido plagiadas, de Casos de Família e de microshorts jeans, recomendo muito.
8.75/10